Gostaria de oferecer a vocês, nesta data de hoje, a crônica de uma mulher madura, vivida e letrada. Mas vou cometer um texto vexatório e contar que encontrei uma foto minha, de vinte anos atrás, e senti saudade de um corpo esquelético, assustado e fraco. Naquela época, eu pesava 44 quilos, tinha parado de menstruar e não aguentava nem subir uma escada sem me sentir mal. Eu chegava a sentir medo de sair sozinha na rua e desmaiar.
Recentemente, depois de pelo menos uma década sentindo dores infernais pelo corpo, descobri que tenho sarcopenia e osteopenia. Agora preciso correr contra o tempo e fortalecer músculos e ossos para não me tornar uma senhora entrevada daqui a duas décadas. Investigando com médicos como cheguei a esse ponto, sendo que me alimento bem e faço exercícios com frequência, olhamos para os meus vinte anos, sobretudo para as sequelas desse tempo.
Fiquei absolutamente escandalizada com o meu pensamento ao ver a foto antiga. Aquela mulher magérrima nunca mais voltaria, e eu sofri. Por um dia inteiro a palavra “beleza” não me saiu da cabeça. O vestido tamanho PP soltinho nas ancas. O braço tão fino que me fazia parecer ainda mais nova. O rosto fino, quase uma falta de rosto. Que saudade. Eu juro que pensei isso. QUE SAUDADE. Que mulher linda! Mas onde estava a mulher? Eu era uma criança espichada à força, apavorada com o corpo que insistia em crescer e envelhecer. Aquela garota não tinha ideia de como ter uma profissão, um relacionamento, uma filha, uma casa. Eu nem sequer tinha um corpo.
Eu vivia tão angustiada e ansiosa que uma azeitona passava pela minha goela como se fosse um leitão à pururuca. A sensação constante de queda livre me deixava enjoada (e, como sempre fui fóbica com ânsia de vômito, preferia não comer para não ter que vomitar). Um pensamento intrusivo me dizia o tempo todo que as comidas me fariam mal porque eram temperadas demais para o meu “estômago sensível”, ou estavam sujas e envenenadas.
Às vezes eu checava tanto a validade de um queijo que ele vencia antes da minha obsessão passar. Eu tinha tanto nojo do que eu chamava de “bicho morto” (carnes, ovos, derivados de leite) que eu não conseguia olhar para a comida do prato ao lado. Até uma inocente massa poderia me fazer mal, porque elas “pesam”. Um dia a fobia atingiu também folhas, verduras e legumes, depois que li, apavorada, sobre parasitoses e salmonela. Então eu comia o mínimo, pensando que, se algo desse errado, daria só um pouco errado.
Vinte anos atrás eu não encontrava o menor prazer nas refeições. Sempre que me chamavam para jantar, era certo que eu passaria vergonha. Enfiava meia colherada de arroz na boca e já sentia o corpo retrair. Alguns namorados da época, quando me olhavam deitada de lado na cama, pelada, diziam que o desenho da minha silhueta era a coisa mais bonita que já tinham visto. Passavam a mão se divertindo com a descida, o buraco profundo que separava meu seio da minha bunda. Muitas mulheres sentiam raiva ao me ver comer sem vontade, sem vida. “Queria ser assim.” E os caras vibravam com a minha fraqueza, os quase desmaios –isso tinha algum charme para eles.
Hoje peso 55 quilos. Quando chega a hora do almoço, começo a cantarolar instantaneamente. O prazer que sinto em comer! Aquela chama na boca do estômago, a libido inteirinha ali, pronta pra devorar um belo bife. Adoro dizer “belo bife”. Procuro por doces com o foco e a dignidade de uma guerreira de filme épico. Meus braços aguentam subir uma escada com minha filha de 22 quilos no colo. Me tornei uma mulher, deu certo. Só que olhei minha foto anoréxica e senti saudade daquele corpo inexistente. É muito pesada e assustadora a merda que fizeram com a cabeça das mulheres. Mas meu corpo, esse que tenho hoje, não é uma foto, e sim esse que escreve.
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