Exploração impiedosa da infância feminina vai até quando? – 02/02/2025 – Giovana Madalosso

Se tenho lugar de fala como filha mais velha? Tenho lugar de grito. Foi assim, falando alto, gritando, botando o pé na porta da sala, que consegui ser tão respeitada quanto meus irmãos, mais novos mas dotados de um aparato poderoso no meio das pernas.

Enquanto eles exerciam a delícia de ser homem, eu deveria ajudar nas tarefas domésticas. A liberdade sexual deles rendia adjetivos como “garanhão” e “pegador”. A minha rendia o temor de que ninguém quisesse namorar comigo por eu ser muito “rodada”. Nos negócios da família, eles tinham ascendência. Eu e minha irmã mais nova que nos resolvêssemos com nossos futuros maridos, que, aliás, nunca existiram: ela é gay e eu tenho uma relação fora desse script.

Se para esta burguesa foi difícil, imagine para a maioria das filhas mais velhas desse país. Acabei de acompanhar dois casos que deixaram meu coração de primogênita partido.

Minha fisioterapeuta, mãe de três filhos, era casada com um cara incapaz de levar o próprio prato até a pia. Devia pensar que, se lavasse um pires, uma vagina nasceria no meio da sua testa –ou ele era só folgado mesmo. Ela e a filha mais velha, de 12 anos, dividiam todo o trabalho doméstico, o que incluía faxinar, cozinhar, lavar roupas e cuidar do bebê.

Um dia, a fisioterapeuta descobre que seu marido andava se relacionando com uma outra coluna vertebral. Há mais de um ano. Enquanto ela e a filha lavavam suas camisas, ele sujava outras sabe-se lá onde, tomando o cuidado de remover os fios de cabelo alheios antes de chegar em casa. A fisioterapeuta meteu-lhe um metatarso na bunda.

Sobrecarregada pelas contas extras, ela teve que aumentar sua carga de trabalho, aumentando consequentemente a carga doméstica da filha que, exausta de tanto trocar fraldas e lavar louças, tentou cortar os pulsos.

O outro caso é tão comovente quanto e retrata um clássico do Brasil. Aqui é ilustrado pela enfermeira de uma idosa. Mãe de quatro filhos abandonados pelo pai, precisou deixar todos os cuidados da casa com a filha mais velha, de 11 anos. E, por cuidados, entendam-se muitos, já que o trabalho de enfermeira tem uma carga horária pesada.

Era a criança de 11 anos que cuidava de toda a rotina da casa. Lavava, passava, limpava, cozinhava. Dava banho nos irmãos. Colocava o bebê para dormir. Óbvio que, com tanto a fazer, não tinha tempo de ir à escola. Viu seus irmãos mais novos se alfabetizarem, enquanto assistia a noite cair no seu horizonte sem horizontes, encostada à boca do fogão.

Onde estão os pais? Onde estão os maridos? Onde está o apoio do governo? No Brasil, são 11 milhões de mães solo. Mais outros tantos milhões de mães que tem um homem ao seu lado mas estão sozinhas no cuidado doméstico. Ou melhor, sozinhas não. Estão muitas vezes acompanhadas de filhas mais velhas que deveriam estar estudando ou curtindo suas infâncias, e não servindo desde cedo de copeiras do patriarcado.

Tive o privilégio de conseguir transformar meu lugar de fala em lugar de grito. De esperneio. De fúria. De transformação. Muitas vezes, as primogênitas precisam engolir seus gritos, que tomam forma de sintomas em seus corpos. É por elas que venho grasnar: essa exploração impiedosa da infância feminina vai até quando?


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