Do portão, Maria de Lourdes Scarpim, 62, olha a rua de casa alagada e as pessoas passando com água na altura dos joelhos. “É, nunca vi assim”, afirma para uma vizinha na laje do sobrado ao lado.
Maria de Lourdes mora com o marido Claudemir, 69, há 42 anos na rua Afoxé, no Jardim Maristela, no distrito do Jardim Pantanal, no extremo leste de São Paulo, que desde a madrugada de sábado (1º) está com ruas alagadas. Segundo ela, é a primeira vez que seu imóvel alagou.
“No sábado, não dormi de medo. Sou hipertensa e tenho médico amanhã [terça], não sei como vou sair daqui”, diz, mostrando o fogão em cima de tijolos —a água no fim de semana cobriu o primeiro degrau da escada na sala, que leva ao segundo andar
Embaixo d’água, moradores do Jardim Pantanal, acostumados com o problema toda época de chuva forte, tentam manter a rotina no meio da inundação. Mercados, lojas de roupas e bares estavam abertos, mesmo com a dificuldade de se chegar até ali na tarde desta segunda-feira (3).
A Folha percorreu em um barco quarteirões alagados no distrito. Não havia perspectiva de que a água baixaria tão cedo.
Moradores ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que a velocidade da inundação surpreendeu desta vez. Para comparação, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), choveu 101 mm em 24 horas na sexta-feira (31) em Cidade Tiradentes, também bairro da zona leste.
“Em 2010 [quando a região ficou alagada por mais de 40 dias], a água subiu devagar, mas agora foi de uma vez, em poucas horas”, afirma Odair Rezende de Souza, 59, uma das lideranças do local, que está ajudando na arrecadações de doações e da logística para entregar comida e água aonde só se chega de barco ou com água mal cheirosa pela cintura.
Na madrugada de sábado, ele conta ter ido de casa em casa acordar as pessoas que dormiam enquanto a água invadia salas e cozinhas.
O filho dele, também Odair, segurança de 25 anos, é quem empurra e rema um barco de alumínio emprestado pelas ruas irreconhecíveis.
E ouve histórias pelo caminho. Ana Paula de Souza, 25, agradece a solidariedade, inclusive de um morador próximo de onde ela reside, em Cidade de Deus, outro bairro do Jardim Pantanal, que levou quem necessitasse para sua casa —quando a reportagem esteve ao local havia 13 crianças e nove adultos.
“Perdi tudo, não deu para salvar nem roupa”, afirma Ana Paula.
Perto dali, Tauane Gouveia, 27, grávida de seis meses, segurava no colo o sobrinho de 1 ano. Ela mora no imóvel ao lado, que continuava alagado por volta das 15h desta segunda —a geladeira foi colocada em cima de cadeiras, por exemplo. Mas, do resto, pouco se salvou. A gestante conta ter conseguido preservar as roupinhas doadas para o bebê que vai nascer.
“Às vezes é melhor agradecer por estar vivo”, afirma ela, que divide a casa do irmão com mais sete adultos e três crianças.
Nos quarteirões que viraram rio há veículos quase submersos, móveis espalhados e crianças que brincam no meio do aguaceiro.
Manoel Aguiar, 35, levou o carro para um lugar mais seco e colocou a filha Manoelly, 5, para fazer meia hora de caminhada de volta bairro adentro. Teve de desviar do que encontrava pelo caminho, como lombadas no asfalto escondido e galhos de árvores.
Uma mulher transformou uma geladeira sem porta em barco para puxar o filho com uma corda, e telhas com isopor viraram balsas para levar fardos de água mineral onde a inundação é maior.
A família de Luciano Teixeira, 25, fez da garagem de casa, num ponto seco do Jardim Pantanal, um pequeno centro de recolhimento e distribuição de fraldas, brinquedos, comida, água e refrigerante. “Apareceu gente até de Mauá para doar”, conta.
Aline Barretos Guerra Dantas preparou a alimentação em seu restaurante em São Matheus, também na zona leste paulistana, a partir de doações que ela e a família recolheram. A comida chegou em um outro ponto do bairro e seria levada de barco. “Tem um batalhão trabalhando lá para ajudar essas pessoas.”
Aguinaldo da Silva de Oliveira, 53, foi resgatado pelo Corpo de Bombeiros, com um irmão que tem deficiência visual, e levado para um abrigo montado pela prefeitura na Emef (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Murures, onde foi montado um abrigo provisório —por volta das 16h30 desta segunda havia cerca de 20 pessoas lá. “Não sei como vai ser quando a água baixar, pois dizem que está tudo dando choque na minha casa.”
No local, havia uma fila com pessoas questionando se seriam distribuídas cestas básicas ali. A resposta de uma atendente é que não havia previsão. Questionada sobre como funciona o abrigo e a assistência social emergencial no Jardim Pantanal, a gestão Ricardo Nunes (MDB) disse que desde o final de semana foram entregues cerca de 8.300 almoços, 6.450 jantares e 4.850 cafés da manhã, 5.183 colchões, 4.080 cobertores, 2.436 cestas básicas e 13.760 copos de água, entre outros itens.
Em atendimentos de saúde foram realizados 22 acolhimentos aos pacientes que perderam medicamentos, aplicação de 159 doses de vacina e 180 frascos de hipoclorito entregues.
A prefeitura diz também emitido autuações pela invasão e aterramento de uma área pública às margens do rio Tietê.
No começo da tarde, um grupo de 60 pessoas bloqueou durante quase meia hora o trânsito a partir do km 24 da rodovia Ayrton Senna, sentido interior, por causa das inundações.
Em um evento na zona leste, Nunes disse que vai incentivar que moradores do Jardim Pantanal deixem o local. Para ele, essa é a única solução para os constantes alagamentos naquela região, na várzea do rio Tietê.
“Toda vez que chover, vai acontecer isso. […] É praticamente impossível você querer ir contra a força da natureza”, diz ele. O prefeito diz até haver um pré-estudo para fazer um dique na área, mas que custaria quase R$ 1 bilhão. Por isso, “não dá para fazer”.
Durante a manhã, moradores receberam com um protesto o vice-prefeito de São Paulo, coronel Ricardo Mello Araújo (PL), durante uma agenda dele no bairro. Procurado, ele disse que estava conversando com a população e que quando a imprensa chegou, começou uma gritaria.