História: Langsdorff expôs violência do país há 200 anos – 06/02/2025 – Cotidiano

O barão Georg Heinrich von Langsdorff, médico alemão naturalizado russo, registrou entre os anos de 1825 e 1829 aspectos da flora, fauna e da sociedade brasileira, na sua famosa expedição científica que percorreu mais de 16 mil quilômetros pelo país.

Uma leitura atenta de seus diários de viagem, entretanto, aponta um lado mais sombrio do Brasil na terceira década do século 19: a violência que já assolava algumas cidades brasileiras naquela época.

A expedição Langsdorff foi uma missão financiada pela Rússia que fazia parte da estratégia do czar Alexandre 1º para se aproximar do governo imperial brasileiro e estabelecer relações comerciais entre os dois países.

Os expedicionários partiram da província de São Paulo, por via fluvial, percorrendo os rios Tietê, Paraná, Pardo, Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço, Cuiabá, Preto, Juruena, Tapajós e Amazonas.

Entre os tripulantes, estavam o astrônomo da Marinha Russa Nester Rubtsov, o botânico alemão Ludwig Riedel e o desenhista francês Hercule Florence, que registrou em gravuras todos os trechos da viagem, constituindo um inventário de imagens do Brasil do século 19.

Quando se preparava para o embarque fluvial que levaria sua comitiva da cidade de Porto Feliz (SP) para o norte, em 1825, Langsdorff soube que um membro de sua expedição —um escravizado chamado Alexandre— havia sido assassinado numa briga, a facadas.

“Para mim e para a expedição, foi uma grande perda”, escreveu o barão. “Alexandre era um bom escravo: realizava, com boa vontade e prazer, suas tarefas, nas quais havia adquirido grande habilidade.”

A partir dessa ocorrência, intensificaram-se as anotações de Langsdorff sobre a violência presenciada por ele no Brasil. “Infelizmente, o Brasil é, hoje, uma terra onde nem direito de propriedade nem justiça são protegidos e exercidos”, escreveu.

“A administração está entregue ao caos; mesmo que o próprio imperador estivesse cercado de homens públicos ativos —o que não acontece na realidade— isso não seria suficiente para resolver as convulsões internas”. E, dirigindo-se a seus compatriotas europeus, apelou: “Deixem a convulsão passar, fiquem onde estão e comam seu pão merecido. Ele terá melhor sabor do que açúcar e café produzidos com risco de vida”.

Nos dias seguintes, continuaram as anotações sobre a onda de criminalidade verificada por Langsdorff: “Prevalecem aqui assassinatos cruéis, furtos e a injustiça dos ricos”, anotou.

“Mais doloroso para mim é pensar que, nesta terra, assassinatos, roubos e furtos ficam impunes. Já sabem quem é o assassino do meu Alexandre: é um escravo do comerciante sr. José de Barros; mas até agora ele ainda não foi chamado para o interrogatório, muito menos preso, pois as novas leis constitucionais determinam que o autor do crime só pode ser preso depois de comprovado o delito e, para se comprovar um delito, é necessário que ele seja apanhado em flagrante com a faca ou arma na mão. É numa terra como essa que vou empreender agora uma viagem científica…”

A primeira Constituição do Brasil havia sido outorgada pelo imperador Dom Pedro 1º pouco antes, em 1824, e deixado uma lacuna para punições. O artigo 179 dizia: “À exceção de flagrante delito, a prisão não pode ser executada, senão por ordem escrita da autoridade legítima. Se esta for arbitrária, o juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas que a lei determinar”.

Segundo a historiadora Regina Célia Lima Caleiro, da Universidade Estadual de Monte Claros, depois da Independência do Brasil, havia a necessidade de estabelecer um novo Código Penal de acordo com os princípios do Iluminismo e da Revolução Francesa, já que o novo país pretendia ser ‘moderno’.

“Mas como adequar princípios de igualdade onde a violência era prerrogativa dos que possuíam escravos?”, questionou a historiadora, num trabalho acadêmico intitulado “A elite imperial e a violência institucionalizada”.

Especialistas ouvidos pela Folha são unânimes em dizer que a violência não é um fenômeno estranho na vida cotidiana do Brasil, desde sempre. Mas a criminalidade, tal qual a vemos nos dias de hoje, não teria sua gênese naquele quadro descrito por Langsdorff.

Sérgio Adorno, professor sênior de sociologia da USP, lembrou que desde a colônia a sociedade brasileira sempre foi muito violenta, sobretudo com seus grupos dominados e sujeitos ao mando masculino.

A partir dos anos 1970, entretanto, esse fenômeno tomou outra forma com o aumento da delinquência, da violência urbana, da chegada do crime organizado, principalmente ligado ao tráfico de drogas.

Mesma visão tem Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. “Claro que o Brasil é um país violento há mais de dois séculos”, disse. “Mas o banditismo de hoje é um fenômeno urbano que vem depois dos anos 1960 e 1970, com o crescimento das cidades no Brasil. A violência de hoje está muito ligada aos grandes mercados de consumo.”

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