A pergunta foi feita pela psicanalista Isildinha Baptista Nogueira em um evento da SP Escola de Teatro.
Mulher negra em um ambiente eminentemente branco e elitista, Isildinha tornou-se mestre em psicologia pela PUC e doutora pela USP nas décadas de 1980-90. Fez sua formação como psicanalista na prestigiada Fédération des Ateliers de Psychanalyse, onde trabalhou junto a Françoise Dolto, Maud Mannoni, Félix Guattari e outros autores consagrados. Foi indicada ao Prêmio Jabuti por seu livro “A Cor do Inconsciente” (Perspectiva, 2021) e mantém uma rotina intensa entre a clínica e as palestras no Brasil e no exterior.
A pergunta não exime quem a fez do problema, já que não se trata de apontar dedos para quem seria ou não racista, mas de questionar o que fazemos com esse fato inconteste. Ou seja, o fato de que nos medimos pela cor, pelo gênero e pela classe. A pergunta, portanto, é ética.
Formulada assim, ela se torna um antídoto para a ideia de que, sendo o racismo e a misoginia estruturais, não haveria o que fazer com eles. Como se o primeiro passo —admitir que há racismo— fosse também o último, pois, paralisados nessa constatação, chafurdaríamos diante do irreparável.
Nem tudo é reparável, mas aquilo que pode ser reparado deve sê-lo. Não apagaremos 500 anos de violência, nos quais a variedade fenotípica da espécie foi usada como justificativa para que uns escravizassem outros. Mas podemos contar essa história nas escolas para que as crianças reconheçam que se trata de uma invenção humana tenebrosa, que nos afeta até hoje, e não um acontecimento superado ou natural. Também é fundamental o resgate da cultura, da história e do conhecimento dos que vêm sendo subjugados.
Reparar não é apenas trocar o fenótipo ou o gênero dos que estão no poder por outros que assumam o mesmo papel, fazendo o rodízio entre opressores e oprimidos. É questionar as próprias estruturas de poder, o capitalismo, que muitos insistem em dizer que é o único arranjo social possível —como se fosse algo dado pela natureza, e não inventado por nós. A pergunta sobre o que seria uma alternativa a ele não foi satisfatoriamente respondida até aqui, mas nosso maior compromisso é não desistir de encontrar respostas para ela.
Os estudos sobre saúde mental são unânimes ao apontar que nunca fomos tão emocionalmente miseráveis. O utilitarismo nos laços sociais, a desconfiança generalizada e a incomunicabilidade da era digital se mostram fatais na esfera pessoal. O capitalismo venceu colocando tudo de mais valioso a perder.
Isildinha, esse farol de nosso tempo, quer saber que tipo de racistas somos. Para enfrentar essa convocação, precisamos reconhecer as artimanhas diárias que usamos para manter nosso lugar de poder —esse poder que nos desumaniza e nos faz sofrer.
Não deixaremos de ser brancos, não mudaremos nosso gênero e, muito provavelmente, não mudaremos nossa classe. A questão é: poderemos, ainda assim, nos implicar e nos responsabilizar pelos efeitos desses marcadores em nós e nos outros? Poderemos fazer frente ao cinismo individualista do mercado e nos unir na luta para que direitos não sigam sendo privilégios?
Temo que ainda não estejamos sequer à altura da pergunta de Isildinha.
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