Como em ‘Emília Pérez’, ninguém é uma coisa só – 11/02/2025 – Assim Como Você

Quando se pertence a algum grupo dos tidos como diferentes na vida, dos feitos minorizados e amplamente tatuados com desenhos e destinos nem sempre escolhidos por conta própria, é comum que se gerem expectativas de manifestações de características padronizadas e que se siga uma conduta de valores limpinhos e edificantes.

Por eu ser cadeirante, por exemplo, há quem me tenha e me queira como “serumano” tranquilo, elevado em fé, em força de viver. O tal exemplo de abnegação e persistência. Quando criança, sobretudo, era comum que me vissem como “menino bonzinho” e inspirador.

O problema é que vez ou outra posso ser lá meio revoltoso contra o mundo, afinal, minha condição –e toda labuta da existência— não é bolinho e seria natural um certo rancor contra tudo e contra todos. Ninguém é nem precisa ser uma coisa só. Os acontecimentos, as trocas entre pessoas e as oportunidades mudam o sabor do caldo.

Tenho, sim, aderência aos diretos humanos, à pluralidade de estar vivo, à defesa de vulnerabilidades de viventes, mas nada me blinda ou me impede de querer usar outras cores na primavera ou durante todas as estações.

O mesmo vale para negros, feministas, indígenas, favelados, transgêneros e demais “turmas da diversidade”. Cada indivíduo vai carregar, contradizer e expor o que lhe convém e o que pode alcançar.

Pegando carona nisso, envolto em polêmicas no Brasil, o laureado filme “Emília Pérez”, acabou por ter invisibilizada quase totalmente o espaço de discussão em torno das dubiedades e contradições, amplamente justificáveis, da protagonista da trama.

Ora sanguinária ora profundamente humana, ora sensível de ir às lágrimas ora cabra macho de ser violenta, ora santa ora o demônio, Emília apaixona e gera ódios por ser múltipla.

Mesmo quando a gente escolhe um novo caminho –e não é escolhido por ele–, deixando para trás um mapa já percorrido, é absolutamente esperado e legítimo que se revisite paradas antigas, que se traga para a memória ou mesmo para a realidade passagens de outros tempos.

Para o terror dos conservadores, há em dias atuais muita força na defesa de fluidez de várias maneiras, de gênero, de ideias, de comportamentos, de valores, de carreiras… E tudo faz sentido quando a hipocrisia não está na sala.

E isso nada tem a ver com ser volúvel, ser biruta de aeroporto ou ser promíscuo. Tem a ver com ser livre para entender seus processos, suas dores, seus avanços internos, suas ignorâncias, suas predileções e seus medos.

É a complexidade e a vulnerabilidade de nossas caixolas, seguramente, o que nos distancia e nos calibra para sermos sempre maiores e melhores que o artificial gerado pela tecnologia.

A gente podia ser mais incentivado e apoiado a explorar as amplitudes e menos tolhido por não seguir sempre uma linha reta e excludente. A gente não precisa ser uma coisa só.


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