Celulares nas escolas: proibir sem educar é um erro – 13/02/2025 – Saúde em Público

A Bela Adormecida foi amaldiçoada quando nasceu: aos quinze anos, iria se ferir com uma roca e morreria. Seu pai, o rei, decidiu tomar providências e mandou queimar todas as rocas do reino. Daquele dia em diante, ninguém mais fiava, nem linho, nem algodão, nem lã. Ninguém além da torre do castelo. Quando completou quinze anos, a Bela Adormecida estava entediada, procurando algo para brincar, e encontrou uma roca. Maravilhada com a novidade, furou o dedo e sentiu um grande sono. Na mesma hora, aquele sono estranho se espalhou por todo o palácio. Adormeceram todos.

Uma história semelhante se desenrola no Brasil. No início deste ano, o governo sancionou a lei de restrição dos celulares nas escolas, que proibiu o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais em salas de aula, recreios e intervalos, exceto para fins pedagógicos, de segurança ou acessibilidade. Defensores da lei dizem que ela é fundamental para proteger a saúde mental dos estudantes e melhorar as condições de ensino. O que dizem as pesquisas?

Muita atenção midiática, poucas evidências científicas

Um estudo que acaba de ser publicado no Reino Unido, que contou com a participação de 1.227 alunos entre 12 e 15 anos, mostrou que não há evidências de que políticas escolares restritivas levem a uma melhora da saúde mental. Outro ponto importante é que a proibição não melhorou a relação desses estudantes com o telefone celular e com as mídias sociais.

Já sobre a dimensão da aprendizagem e do ensino, um relatório publicado pelo Digital Futures for Children, vinculado à London School of Economics and Political Science, concluiu que há muita atenção midiática e poucos estudos sobre os efeitos das políticas públicas no que tange uso de celulares nas escolas e a piora ou melhora do desempenho acadêmico.

Educação e saúde mental são questões complexas e têm muitos fatores interdependentes e contextuais. Com tão poucos estudos, as evidências não são suficientemente detalhadas para definir quais políticas funcionam melhor para cada país ou para crianças de diferentes faixas etárias. Isso significa que a lei aprovada no Brasil deve ser encarada como um teste, não como uma solução.

Lei 15.100/2025: um teste, não uma solução

A lei também corre o risco de agravar uma situação já precária. Em seu artigo 4º, ela determina que as próprias redes de ensino e escolas deverão elaborar estratégias para tratar do tema no ambiente escolar. Caso sejam mal elaboradas, as regras podem gerar episódios de crise, de violência, impactar negativamente o próprio processo pedagógico ou até aumentar as faltas e a evasão escolar.

Os desafios trazidos pelas tecnologias digitais para a saúde mental de crianças, adolescentes e adultos são grandes. Mas não há defesa da saúde sem educação para o uso. A escola pode não ter a missão de “ensinar a usar o celular”, como alguns dizem, mas é na escola que as nossas crianças e adolescentes estão a maior parte do dia — especialmente verdade em um Brasil que promove o programa “Escola em Tempo Integral” de forma tão intensa.

A lei do banimento dos celulares foi sancionada quando a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares completou um ano sem ser regulamentada pelo governo. Essa Política precisa sair do papel para garantir que as ações de saúde mental nas escolas sejam baseadas em evidências e sejam monitoradas para assegurar sua eficácia.

A escola é responsável por educar, isso envolve toda a comunidade escolar e é uma responsabilidade coletiva. No entanto, ela não é uma bolha. Não são apenas os estudantes que apresentam sintomas de vício em celulares – afinal, todos estão adormecidos. O conto da Bela Adormecida poderia ser diferente se o reino, incluindo a jovem princesa, fosse educado sobre os riscos da roca. O mesmo serve para o banimento dos celulares: sem educação para o uso saudável e responsável e sem a participação de estudantes, a proibição por si só é insuficiente e pode até gerar ou agravar os problemas atuais.

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Dayana Rosa é gerente de saúde mental do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), coordenando a Secretaria Executiva da Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental e o Programa Juntô, em parceria com o Instituto Child Mind e o Centro Global de Saúde Mental da Fundação Stavros Niarchos; Priscila Borges é  analista de políticas públicas no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), onde atua principalmente na articulação de iniciativas voltadas para Saúde Mental de Crianças e Adolescentes; Victor Vicente é head de educação midiática no Instituto Felipe Neto (IFN) e coordenador de educação e difusão do conhecimento do Brazilian Institute of Data Science – BI0S, sediado na Unicamp.


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