A vida de Liliana Syrkis foi repleta de momentos de dor, fome e desespero, mas também foi de alegria, conquistas e glamour em um roteiro digno de filmes de Hollywood.
Nascida em uma família judia em Pinsk, na Polônia, em 1923, ela tinha apenas 16 anos quando estourou a Segunda Guerra Mundial e o nazismo passou a massacrar os judeus no que ficou conhecido como Holocausto.
Ela, a mãe, Hannah, e a irmã, Janete, de 6 anos, foram deportadas para a Sibéria, na Rússia. Seu pai, o oficial dentista do exército polonês Alfred Binensztok, foi assassinado em Kharkov, em 1940.
Na Sibéria, as três, assim como outras famílias, foram levadas para cidades pequenas do interior, onde sofreram com o frio de até 40°C abaixo de zero e fome por sete anos. Nesse período, elas praticamente só comiam batata, que elas mesmas plantavam.
Lila, como era chamada, também sobreviveu ao tifo, uma doença infecciosa, enquanto trabalhava em um hospital siberiano.
Após a guerra, voltaram à Polônia, mas não encontraram ninguém da família. Dos mais de 60 familiares, apenas as três haviam sobrevivido. Os que ficaram no país foram mortos nos campos de concentração.
Um tio de Lila, que havia vindo para o Brasil antes da guerra, ficou sabendo delas e começou a fazer de tudo para ajudá-las. Mas, segundo ela escreveu na autobiografia “Lila”, o governo de Getúlio Vargas não queria a vinda de judeus da Europa.
Enquanto aguardava o visto para entrar no Brasil, elas moraram quase um ano em Estocolmo, na Suécia, onde Lila aprendeu a costurar, trabalhando em uma confecção. A vida não era fácil, mas nem se comparava às agruras vividas no gelo siberiano.
Elas só conseguiram o visto para entrar no Brasil com a ajuda de um padre na Suécia, que deu certidões dizendo que as três eram católicas.
Então, o tio, que tinha uma fábrica de gravatas, custeou as passagens de navio de Paris até o Rio de Janeiro. Mas a viagem de terceira classe, no pior lugar do barco, abaixo do deque, foi outro desafio que tiveram de superar, com muito enjoo e sujeira.
Na chegada ao país, em 1947, o tio havia alugado um pequeno apartamento em Copacabana para elas, e a tia conseguiu um emprego para Lila com uma conhecida polonesa que fazia chapéus para alta sociedade no ateliê Casa Colette. Embora seu sonho fosse se tornar médica, ela abraçou a oportunidade que se apresentava.
Algum tempo depois, ela se casou com Eugenio Syrkis, filho da patroa e também sobrevivente da guerra, com quem teve um único filho, Alfredo (1950 – 2020), que foi jornalista, escritor, ambientalista e deputado federal. A partir de então, passou a se dedicar à costura e ia a Paris todos os anos para os desfiles de novas coleções dos principais estilistas. Também aproveitou para conhecer o mundo e viajou para vários países, como Índia, Nepal, Egito e Itália.
Na década de 1960, a vida de Liliana voltou a sofrer um revés durante a ditadura militar, quando seu filho tornou-se guerrilheiro e precisou fugir do país, exilando-se por quase dez anos. Durante esse período, ela foi levada diversas vezes ao temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social), onde sofreu perseguições e tortura psicológica.
Nos anos 1970, Lila comprou o ateliê, e a Casa Colette virou Maison Liliana. Ela, então, passou a fazer para as damas da sociedade brasileira os modelos mais sofisticados e elegantes inspirados em Dior, Yves Saint Laurent e Givenchy, entre outros. Para isso, comprava tecidos e moldes na França e na Itália.
Seus vestidos de noiva eram especialmente procurados. Entre suas clientes estavam personalidades como a atriz e apresentadora Antônia Mayrink Veiga Frering e a jornalista Hildegard Angel. Também vestiu ícones da sociedade carioca e mineira, como Sara Kubitschek, Carmen Mayrink Veiga e Lily Marinho.
“Liliana não criava moda e jamais se apresentou assim. Era notável copiadora, produzia réplicas magistrais da alta costura, principalmente a francesa. Em época dos lançamentos das coleções, ela viajava para Paris, de onde trazia as ‘toiles’ das roupas desfiladas pelos grandes costureiros da Câmara de ‘Haute Couture’. Além disso, adquiria os mesmos tecidos dos vestidos, aviamentos e até acessórios que completavam os looks. Seu caderninho com os mais secretos endereços comerciais parisienses era uma preciosidade!”, conta Hildegard Angel nas redes sociais.
Um dos momentos mais emblemáticos de sua carreira foi a visita da rainha Elizabeth 2ª, em 1968, quando foi responsável pelos modelos usados pelas esposas de políticos e embaixadores que participaram da recepção à monarca britânica.
Após encerrar as atividades de seu ateliê, quase aos 90 anos, ela se dedicou a suas grandes paixões: a família e a leitura. Ávida leitora e fluente em seis idiomas (polonês, português, inglês, russo, francês e italiano), nutria um profundo interesse por livros de história e romances.
“Vovó, como uma boa matriarca judia, sempre foi obcecada por garantir que tivéssemos a melhor educação, fazendo o que fosse necessário para isso. Mas, ao mesmo tempo, nos ensinou a riqueza da simplicidade —a cuidar das abelhas, da horta do sítio, fazer geleia de morango, a manter a família unida e ser generosa com quem precisa”, diz o neto Guilherme Syrkis.
Liliana Syrkis morreu nesta quinta-feira (13), aos 101 anos, em sua residência no Rio de Janeiro. Ela deixa três netos: Anna, Guilherme e Noah.
Sua trajetória foi eternizada no livro “Lila” (Editora Tix) e no documentário “Lila”, com roteiro de Alfredo Sirkis, que também assinou a direção ao lado de Silvio Da-Rin.
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