Uma proposta de lei complementar relatada pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes prevê mudanças profundas na gestão de terras indígenas do país. O anteprojeto, texto que funciona como um esboço preliminar de uma lei, contém uma série de dispositivos que flexibilizam a exploração mineral em terras indígenas, permitindo, inclusive, que essa mineração ocorra mesmo sem o consentimento dos povos indígenas afetados.
Um dos artigos inseridos no texto prevê que a manifestação das comunidades indígenas sobre esses projetos se daria de forma consultiva, ou seja, a autorização de mineração poderia avançar e ser enviada pelo Executivo ao Congresso, mesmo se os indígenas fossem contrários, desde que haja “razões de interesse público”. Na prática, a mineração passaria a ocorrer a partir da aprovação do Congresso, sem poder de veto pelas comunidades indígenas.
Há previsão ainda de que obras de infraestrutura (rodovias, energia e telecomunicações) e empreendimentos considerados estratégicos pelo governo também possam ser realizados com consulta prévia, mas sem direito a veto.
A gestão das terras também passa a permitir parcerias econômicas entre indígenas e não indígenas para exploração agropecuária, turismo e mineração. A terra continua sendo posse indígena, mas o usufruto pode ser compartilhado em atividades produtivas.
As parcerias não precisam ser intermediadas pela Funai (Fundação Nacional do Índio), mas devem ser comunicadas ao órgão dentro de 30 dias após a formalização. A decisão deve partir da comunidade indígena, segundo seus próprios meios de organização e consulta interna.
Da forma como está, o projeto introduz regras para indenização de proprietários não indígenas que possuam título sobre áreas indígenas antes de 1988, permitindo pagamento em dinheiro, terras ou compensações financeiras.
A proposta também institui um novo procedimento administrativo para a demarcação, detalhando prazos e etapas, incluindo a participação de estados e municípios. Cada ente poderia indicar técnicos para acompanhar os estudos e seria informado previamente sobre reivindicações de terras indígenas.
O texto introduz, ainda, a possibilidade de redimensionamento de terras já demarcadas, caso haja erro no processo anterior, o que pode levar à redução de territórios indígenas reconhecidos.
Outra mudança é a introdução de indenização para ocupantes não indígenas que possuam título de terra anterior a 5 de outubro de 1988 (data da Constituição). Se um proprietário tiver título legítimo e estiver ocupando a terra desde antes de 1988, ele pode receber uma compensação financeira (em dinheiro ou títulos da dívida agrária) ou ser realocado para outra terra equivalente.
A proposta de foi elaborada a partir de uma comissão de conciliação criada no ano passado para tratar de questões relacionadas ao marco temporal das terras indígenas.
Ao defender a proposta, o ministro Gilmar Mendes afirma que coube a seu gabinete a “racionalização dos trabalhos de deliberação da comissão”, para elaborar um “projeto que compatibiliza, na maior medida possível, as diferentes posições e preocupações externadas durante as reuniões e veiculadas nas propostas”.
“Rememoro a todos que a proposta não é o ponto final dos trabalhos, mas tentativa de aproximação das partes e, por esse motivo, sujeita às modificações e aprimoramentos pelos membros da Comissão durante ambas as ocasiões”, afirma Gilmar, na exposição do anteprojeto.
A proposta foi mal recebida pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que já integrou a comissão, mas deixou o grupo no ano passado, por divergências sobre a forma que o trabalho era conduzido.
“A situação é calamitosa. Esse texto é a expressão máxima de violência com os povos indígenas. Parece uma nova Constituinte do capítulo dos indígenas feita de maneira unilateral, para usurpar seus direitos”, diz Mauricio Terena, coordenador jurídico da Apib.
A advogada Deborah Duprat, ex-procuradora-geral da República, conhecida por sua atuação na área de direitos humanos, também fez uma análise crítica da proposta.
“A intenção é abrir as terras indígenas para exploração econômica. Esse é o sentido, transformando a terra em mercadoria. Há inúmeros problemas graves. O Supremo é a camada para dizer se uma lei é constitucional ou não, não aquela que negocia uma lei”, disse Duprat.
“Pela proposta, a demarcação viraria algo interminável, deixando até que associações de classe participem do processo. É algo condenado ao fracasso.”
A minuta foi submetida à comissão em uma reunião realizada nesta segunda-feira (17). Um segundo encontro está marcado para o dia 24.
Questionado pela Folha, o gabinete de Gilmar rebateu as críticas. Sobre o processo de demarcação se tornar mais moroso e complexo, lembrou que, atualmente, há casos tramitando há décadas, sem definição. O anteprojeto estabelece um prazo máximo de 300 dias para que o processo de demarcação seja concluído e homologado. Sua avaliação é de que essa mudança busca dar previsibilidade ao processo.
A respeito da mineração e construções de empreendimentos que não tenham o aval dos povos indígenas, o gabinete declarou que se trata de uma medida excepcional e que já tem jurisprudência em atos da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O anteprojeto não define com clareza o que se enquadra como “interesse público”, o que deixaria margem para interpretações amplas. O texto sugere, no entanto, alguns critérios, como atividades consideradas estratégicas para o país, como mineração de minerais críticos para a economia, além de infraestrutura essencial, como energia elétrica e transporte.
Entram, ainda, nesta lista, situações de segurança nacional e proteção sanitária que justifique a presença de forças de segurança, além de situações de excepcionalidade, onde a obra ou exploração não possa ser feita em outro lugar sem comprometer objetivos maiores do Estado.
A Folha procurou a Funai, o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) e a AGU (Advocacia-Geral da União) para comentar o tema. Não houve retorno até a publicação deste texto.