Com apenas 1,5 km, a alameda Barão de Limeira começa no centro antigo, numa bifurcação da avenida São João, entra nos Campos Elíseos, primeiro bairro planejado da metrópole, e termina na Barra Funda. Mais que interligar lugares, porém, a via guarda em sua pequena extensão memórias de um tempo de glamour que paulatinamente se transformou e se degradou.
Basta uma simples quadra para separar o que há de melhor do que há de pior nessa espécie de microcosmo da cidade de São Paulo, em que, à maneira de um álbum de fotografias, ficam lado a lado diferentes retratos de várias gerações de uma grande família. Quanto mais se distancia do centro histórico, mais a alameda ganha contornos de bairro.
Bem no comecinho da via, aberta ao público em 1882, nasceria a praça Julio de Mesquita. O antigo marco da modernidade urbana é hoje refém do tráfico de drogas que assola as cracolândias e arrasta sem rumo uma multidão de dependentes químicos.
O cenário de degradação, aos poucos, dá lugar a uma pacata vida de bairro. É que, a partir do cruzamento com a alameda Nothmann, é forte a conexão entre os vizinhos, que revivem certo clima interiorano. “As pessoas aqui se conhecem por nome e se cumprimentam, emprestam café ou açúcar, convidam para comer bolo”, explica a estilista Isa Silva, 35, que vive ali há cinco anos.
Perto do apartamento dela ainda resistem, embora ocultos pela névoa cinza do tempo, prédios históricos, que são verdadeiras pérolas arquitetônicas. Em tempos de riqueza, profissionais renomados criaram obras que se tornariam icônicas.
Um exemplo é o edifício de número 1.003, o Mina Klabin, que saiu da prancheta do ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972), um dos principais nomes da primeira geração de arquitetos modernistas do Brasil. “Aqui tem arte, o passado, esse charme do período de pujança da cidade”, afirma Cristiane Miotto, 46, produtora audiovisual.
Desde 2020, ela mora com o marido, o cineasta Érico Rassi, 52, e os gatinhos Musa e Fredo, num apartamento de 100 m², pé-direito alto, varanda sombreada e bosque no quintal. “Costumo dizer que esta região sacode a gente para o bem e para o mal. São muitos os estímulos: estéticos, humanos e sociais. Existe essa coisa ‘muito goiana’ de se relacionar com as pessoas”, conta Miotto, rememorando sua infância em Anápolis (GO), cidade em que nasceu o casal.
No número 425 da Barão de Limeira, um prédio de 11 andares, cujo formato atual data de 1974, abriga a Folha, que nesta quarta-feira (19) comemora o seu 104º aniversário.
Na quadra seguinte, está muito bem instalado o uruguaio Pedro Aguerre, 59, que, há dois anos, se mudou para um apartamento de 260 m². “A rua é larga, a vizinhança é acolhedora, existe uma espécie de vida familiar no prédio”, diz. “Por outro lado, o começo da Barão está muito abandonado. A sensação que temos é que estão preparando um novo centro, com a vinda da sede do governo estadual para cá, com a previsão de muitas obras, mas com pouca preocupação social e com a história do lugar.”
Sociólogo e professor da PUC, ele diz não se sentir inseguro, mas, sim, preocupado com o destino da região. “Santa Cecília e Barra Funda são exemplos de um reaproveitamento do espaço público, com iniciativas culturais, bares e restaurantes, o que poderia ser feito por aqui”, sugere.
De três anos para cá, a alameda registra um comércio cada vez mais diversificado, principalmente nas últimas quadras, em que salões de beleza e barbearia, farmácias, lojas de luminárias e de sapatos e um brechó dividem espaço com sorveterias, bares e restaurantes. Longas filas de espera denunciam o sucesso de público do Zunny Sushi, um rodízio de comida japonesa próximo à esquina com a Eduardo Prado.
“Aqui as pessoas se conhecem e frequentam os mesmos lugares. Há uma atmosfera de bairro em pleno centro da metrópole”, conta o videomaker Junae Andreazza, 50, há 13 anos na Barão. “Muita coisa me fascina, como o comércio de porta para a rua, a calçada larga, um ambiente que eu tinha quando morava na Vila Alpina, na zona leste.”
Andreazza diz encontrar de tudo na própria via e nos arredores. “Não tenho carro. Faço tudo de bike.”
A facilidade de deslocamento, a oferta de transporte público e de serviços também seduzem profissionais liberais, LGBTQIA+, casais sem filhos e gente que não quer saber de carro, como explica Maria Helena Bononi, 76, tradutora juramentada, há 12 anos na alameda. “Essas quadras finais formam um território à parte”, diz ela, que já morou em Lisboa, na comunidade espiritual Findhorn, na Escócia, e em um ajuntamento budista, em Bruxelas.
Obra do italiano Luigi Pucci (1853-1908), nome por trás do Museu do Ipiranga e da construção neogótica da Santa Casa, o edifício que abriga o colégio Boni Consilii é um antigo palacete. Erguido no final do século 19, serviu de morada a Antônio da Silva Prado, prefeito de São Paulo de 1899 a 1911.
Em maio de 1937, o edifício foi comprado pelas irmãs do Instituto das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus. Quase dez anos depois, o então Colégio Sagrado Coração de Jesus passou a se chamar Boni Consilii.
Ali estudam cerca de 900 alunos do ensino infantil ao médio. No prédio, há também uma igreja aberta ao público, a Paróquia Santa Francisca Xavier Cabrini, fundada em 1969, e as residências das irmãs ligadas à santa, também conhecida como Madre Cabrini.
Há 12 anos no colégio, a mineira de Lagoa Formosa Carlinha Gomes Fernandes, 46, é a responsável pela área administrativa e canônica. “Estamos vivendo um momento de segurança em comparação com períodos anteriores. Nem parece que estamos no centro.”
De acordo com os dois distritos policiais dos arredores, o 3° DP (Campos Elíseos) e o 77° DP (Santa Cecília), furtos e roubos caíram quase pela metade na região em relação ao ano anterior.
“Nos últimos três anos, esta parte final da via teve uma explosão do comércio, o que favoreceu a circulação de pessoas”, conta José Gonçalves Lima, 71, com 20 anos de alameda, onde já teve cinco bancas de jornais —a atual fica em frente ao colégio. Cearense de Itapipoca, é conhecido na região como Zé da Banca.
“Espero que o pior momento tenha passado”, diz, referindo-se ao período do início de 2022, quando dependentes químicos se concentravam na rua Helvétia, uma travessa da Barão, a cerca de uma quadra do apartamento da família dele, formando mais uma cracolândia.
“Hoje, não tenho medo de viver aqui. Sinto-me privilegiado por ter como companheiros de trabalho papagaios, maritacas, sabiás”, conta Zé da Banca, sobre os moradores do bosque ornamentado com ao menos cem espécies de árvores, de pau-brasil a palmeiras-imperiais do colégio, onde seu canto se mistura com o alarido das crianças.
Ao lado da escola, um conjunto de seis sobrados resiste à especulação imobiliária. “Fui criado em apartamento. Viver em casa está sendo uma experiência magnífica”, explica Lucas Negre, 32, professor de artes marciais. Desde 2022, ele divide um sobrado de 200 m² com a mulher Talita, 38, personal trainer, e o filho, Lucca, de dois aninhos.
Parte da casa foi adaptada para abrigar um estúdio de treinamento. “Eu amo o centro”, prossegue. “Não me sinto acuado por uma realidade que, na verdade, é um problema de saúde pública.”
Entre encontros e desencontros, nesses dias de chuvas torrenciais seguidos de sol escaldante, a família se viu presenteada pela visita de um pica-pau-de-topete-vermelho. “Numa cidade tão malcuidada, esse contato com a natureza é um privilégio”, diz ele.
Coisas da Barão.