Segundo a última pesquisa Datafolha, 48% dos evangélicos consideram o governo Lula ruim ou péssimo. Na semana passada, o deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) apresentou argumentos teológicos para combater a bolsonarização das igrejas. Mas —spoiler alert— o PT provavelmente não aproveitará essas dicas.
Depois de ser criticado por orar por Lula no Planalto, Otoni fez um ataque inédito ao bolsonarismo ao afirmar em entrevista: “O anticristo virá do conservadorismo, pois será alguém pró-família e pró-Israel”. No imaginário evangélico, o anticristo ocupa um lugar central na interpretação de fatos políticos, principalmente entre pentecostais.
De acordo com o livro bíblico de Apocalipse, por trás da aparição do anticristo e do falso profeta no fim dos tempos, agiria o grande Dragão, identificado no capítulo 13 como o próprio Satanás. Otoni sabe quão negativa pode ser para a imagem de uma corrente política a comparação com um instrumento nas mãos de Satanás.
Nas igrejas evangélicas, enfatiza-se que Satanás veio “roubar, matar e destruir” (João 10.10). Essa passagem é usada, por exemplo, para criticar a esquerda por seu apoio à ampliação da legislação sobre o aborto e à descriminalização das drogas.
Ao afirmar que “o anticristo virá do conservadorismo”, Otoni ofereceu à esquerda dois argumentos teológicos para desconstruir a mistura tóxica entre religião e política na sua versão bolsonarista.
O primeiro é que, em Apocalipse, a religião, representada pelo falso profeta, promove a idolatria do líder político encarnado pelo anticristo. Se é verdade que a pessoa deve escolher entre “ser cristão ou ser de esquerda”, como repetem pastores bolsonaristas, então o anticristo não pode ser de esquerda.
Otoni também critica a direita religiosa por substituir o Evangelho pelo conservadorismo moral. Segundo o deputado, “o conservador se acha uma pessoa tão pura que não necessita de Cristo para sua salvação”.
Na doutrina evangélica, a salvação é oferecida gratuitamente por meio da morte de Cristo. Na teologia evangélica, uma das principais obras de Satanás, do anticristo e do falso profeta —a trindade do mal—, é enganar as pessoas para que busquem a salvação fora da figura de Jesus Cristo.
O deputado ainda acusa o conservadorismo bolsonarista de hipocrisia. Segundo ele, muitos políticos desse campo se apresentam como defensores de pautas caras aos evangélicos, como o combate ao aborto e às drogas, mas “já fizeram a namorada abortar três vezes e são cheiradores de cocaína”.
Político pragmático, Otoni não esconde a razão de seu incômodo: a aproximação entre conservadores e evangélicos nos últimos anos abriu as portas dos templos para que políticos conservadores como Bolsonaro, que não são evangélicos, disputassem os votos dos fiéis. Antes, esses votos eram destinados exclusivamente a políticos-pastores como ele.
O PT até lançou, nas eleições do ano passado, uma cartilha para orientar seus candidatos no diálogo com as igrejas evangélicas. Mas isso é insuficiente para quebrar o encanto evangélico com a direita bolsonarista.
A crítica de Otoni demonstra que o PT poderia usar argumentos da própria teologia evangélica para construir pontes com os eleitores evangélicos. Adotar essa abordagem teológica da política seria um retorno às raízes do PT, que se baseava na teologia da libertação católica em seus primórdios.
Para se conectar com os eleitores evangélicos que o rejeitam, o PT precisa aprender a comunicar suas ideias políticas usando a linguagem teológica desses eleitores. Otoni demonstrou que isso é possível, mas é um processo que leva tempo e não pode ser feito às pressas na véspera das eleições.