Não tive o privilégio de conhecer o instrutor de ciclismo Vitor Medrado, mas sua morte mexeu profundamente comigo. Não apenas porque sou ciclista, mas porque também sou uma vítima da violência que segue destruindo o Brasil.
Qual família brasileira nunca teve uma arma apontada para um dos seus? São raras as que escapam. E não é de hoje.
Em 1984 eu tinha apenas sete anos quando meu pai, com 31, reagiu a um assalto e foi baleado. Um dos tiros entrou pelo pescoço, despedaçou a traqueia e arrancou um pedaço do coração.
Foi salvo por um pelotão de cirurgiões da Santa Casa de São Paulo, todos habituados a atender “casos de FAF” —termo muito comum nos hospitais públicos Brasil afora, e que se refere ao ferimento por arma de fogo.
Hoje com 71, meu pai, Mauro Guatelli, engenheiro, arquiteto e artista brasileiro, guarda enormes cicatrizes daquele trágico dia. As sequelas também são enormes, principalmente as da alma, em toda nossa família. Mas estamos vivos e unidos.
Imagino como ficam as famílias que não tiveram a mesma sorte, como a do Vitor Medrado, morto a tiro durante um assalto há uma semana, em São Paulo. Por isso é tão difícil para mim encarar esse tema. Remexe as feridas.
No caso do Vitor, não houve reação. Mesmo assim ele teve sua vida retirada por causa de um insignificante telefone celular. O assassino não foi preso, assim como em tantos outros casos desse tipo.
Do ano que meu pai foi baleado, 1984, para cá, as mortes por FAF cresceram 420% em todo território nacional. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), são 104 homicídios desse tipo a cada dia no Brasil.
Morrer baleado no Brasil é tão comum quanto nas guerras que devastam o Oriente Médio. A diferença é que a nossa diplomacia nos chama de “nação pacifista”.
Quando vejo matérias sobre a violência armada em nosso país, nos veículos de imprensa ou nas redes sociais, faço questão de ler também os comentários dos leitores. É ali que a gente vê o tamanho da indignação do povo brasileiro.
O ódio, geralmente destilado sem filtros, carrega igual potência contra criminosos e contra os que exercem cargos de poder. Vejo o povo clamar por penas mais duras e reclamar da inação de políticos e juízes.
Precisamos, a curto prazo, que as leis sejam cumpridas, e que as forças policiais ajam sem a truculência do mundo marginal. Mas não é isso que vai salvar as futuras gerações, não basta prender criminoso.
Nas cadeias do Brasil, verdadeiras escolas do crime, uma sentença é comum a todo penitente: a chance da correção é inversamente proporcional ao tempo que se passa encarcerado.
A longo prazo, a solução está na educação igual para todos, moradia digna para todos, acesso ao alimento e à saúde para todos, valorização da cultura e tudo mais que for necessário para reduzir a extrema desigualdade. Até o dia que sejam extintas a extrema pobreza e a extrema riqueza.
Parece lógico, mas, para os donos do poder, em suas redomas à prova de bala, não é bem assim.
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