Cristãos se apropriam do Carnaval há 2.000 anos – 26/02/2025 – Cotidiano

O Carnaval é uma das festas mais populares do Brasil e combina influências de diversas origens. É uma celebração mundana, mas com fortes conexões religiosas. Hoje, muitos evangélicos veem o evento como um sinal da degeneração da humanidade. Nada de novo: a relação entre Carnaval e religião é tensa desde os primórdios do cristianismo.

O estranhamento entre instituições religiosas e a festividade remonta à origem do Carnaval. Nos primeiros séculos do cristianismo, o mundo romano celebrava diversas festividades. Uma das mais populares eram as Saturnálias, realizadas em honra ao deus Saturno para marcar o solstício de inverno, em dezembro. Essas festas eram marcadas por excessos de comida e bebida, músicas e danças, comportamentos libertinos e inversões de papéis sociais.

Muitos dos primeiros autores cristãos condenavam essas celebrações, classificando-as como “pagãs” e incompatíveis com a moral da nova religião. Tertuliano e Santo Agostinho foram alguns dos que as criticaram abertamente. Com o tempo, no entanto, a Igreja reconheceu que essas festas estavam enraizadas na cultura popular e poderiam servir para disseminar a fé cristã, desde que reinterpretadas.

Essa adaptação ocorreu gradualmente, sobretudo após o século 4º. O Carnaval foi incorporado ao calendário cristão como um período de excessos, prazeres carnais e indulgência que antecede a Quaresma, época de penitência e jejum que prepara os fiéis para a Páscoa (Aliás, a Páscoa também passou por uma cristianização: entre os judeus, marcava a libertação da escravidão no Egito; para os cristãos, tornou-se a comemoração da ressurreição de Cristo).

No Brasil, a colonização introduziu novos elementos que diferenciaram a festividade dos Carnavais europeus, como os de Lisboa, Nice ou Veneza. Apesar da dizimação das populações indígenas e da escravidão africana, muitos elementos dessas culturas moldaram os diversos Carnavais brasileiros, com suas canções, danças e tradições religiosas. O candomblé foi fundamental para o samba e o axé, enquanto rituais indígenas influenciaram o maracatu, por exemplo.

A forte presença das culturas negra e indígena tem sido usada como argumento por algumas correntes religiosas para atacar o Carnaval com virulência. Para certos grupos cristãos, a festividade é sinônimo de idolatria. A fronteira entre a crítica aceitável e a incitação ao ódio e ao racismo tem sido frequentemente ultrapassada.

O catolicismo teve uma relação tensa com o Carnaval. Nem sempre o sincretismo da festividade foi bem aceito pela Igreja. Mais recentemente, as denominações evangélicas passaram a dar grande atenção ao evento, com abordagens diversas.

Algumas delas consideram o Carnaval uma festa repleta de tentações diabólicas e recomendam que os fiéis evitem a folia, dedicando-se ao culto e à oração no mesmo período. Essa é a posição da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) e de outras igrejas pentecostais mais conservadoras.

Outras igrejas, mais moderadas, não condenam explicitamente o Carnaval, mas alertam sobre os riscos do consumo descontrolado de álcool e dos comportamentos sexualizados, incentivando eventos alternativos. Algumas chegam a organizar Carnavais gospel, com músicas cristãs, como a “Batucada Abençoada” da Igreja Bola de Neve.

Os embates ideológicos em torno do Carnaval são antigos e fazem parte do processo histórico, especialmente em períodos nos quais uma religião busca ampliar sua influência sobre a sociedade. No entanto, essas tensões podem facilmente escalar para uma guerra santa que tenta aniquilar a fé alheia e suas manifestações culturais.

Carnaval é sinônimo de risos e alegria sem freios, de corpos em movimento sensual e frenético e de uma convivência com a diversidade que não é a regra na ordem social considerada normal. Ao longo dos séculos, as diversas formas de cristianismo procuraram rejeitar ou domesticar a folia, mas o Carnaval segue resistindo e se adaptando.

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