Nenhum gay é uma ilha – 27/02/2025 – Todas as letras

Dia desses, na minha sessão de análise por telefone, relatei uma certa angústia por uma solidão eminente. A ligação caiu. E, nesses casos, o analista sempre me liga de volta. Dessa vez, ele demorou. Talvez uns quatro ou cinco minutos. Finalmente, ele retornou o chamado. Atendi e brinquei dizendo que não senti tanto medo assim por ter ficado sozinho naqueles últimos minutos. Meu psicanalista encerrou a sessão ali mesmo.

A solidão gay é um grande tema. Os filmes “Baby”, de Marcelo Caetano, e “Sebastian”, de Mikko Makela, lançados recentemente, observem bem essa dimensão, sobretudo quando exploram a busca por afeto e sexo. Partindo de realidades culturais diferentes entre si (brasileira e europeia), as obras contrapõem homens jovens que vendem sexo a homens velhos que pagam por ele.

Como se olhassem para espelhos, trabalhador e cliente discutem a miséria que é o envelhecer. Ambos estão sempre envoltos sob a membrana por vezes constrangedora de se pagar (e se vender) por algo que nos ensinaram como natural, puro. Afinal, o amor, nos disseram, brota como flor. E do amor vem o sexo. Eles andam sempre juntos. Amor sem sexo é amizade, sexo por sexo é perversão. Rita Lee, me ajude!

Além do sexo e do amor, as outras formas de afeto e de conexão também podem funcionar de forma diferente numa dinâmica não heteronormativa. Filhos entre casais do mesmo sexo nao nascem por acidente. Como regra, discussões como esta são menos romantizadas e mais pragmáticas.

O mesmo vale para os amigos. Nem sempre levamos pra vida as amizades da escola. Não temos as conexões da igreja ou do futebol. Os filhos dos amigos dos nossos pais não se tornam nossos amigos. Os critérios para uma amizade entre homens gays são outros, talvez nem tão convenientes e utilitários, mas acidentais. Um match no Tinder vira date, daí vira sexo e depois vira amizade.

Nenhum gay é uma ilha em si mesmo, me disse um amigo, adaptando a frase do poeta e religioso inglês John Donne. Mas a experiência de ser gay num mundo que trata essa existência como peculiaridade me faz pensar um pouco diferente. A gente até se aproxima de uma ou outra ilhota, talvez até forme arquipélagos em algum momento, mas sempre seremos uma porção de terra rodeada por água navegando por algum oceano.


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