Enquanto você lê este texto, estarei fazendo uma coisa que não teria coragem de fazer há 20 anos: sair de maiô, com a lycra encravada e o derrière ao vento, pelas ruas de São Paulo. Obviamente, não estarei a caminho de uma reunião, mas de um bloco de Carnaval.
Há 20 anos, quando a minha bunda era dura e não tinha celulites, eu jamais teria coragem de fazer isso. Faço agora porque trabalhei muito o meu corpo, e não falo do músculo adutor ou femoral, mas do que vai dentro da minha cabeça.
Claro que essa semana ainda tive uma pequena recaída, um momento em que aquela voz tenebrosa voltou a se manifestar. Vesti o maiô, me olhei no espelho e perguntei em voz alta: será que tenho corpo pra sair com esse negócio? Minha filha, criada por aquele músculo que tanto trabalhei, deu a resposta: claro que tem, mãe, todo mundo tem corpo pra sair com esse negócio.
Poderia ser o slogan do Carnaval: todo mundo tem corpo para sair com esse negócio. Seja qual for o negócio: tanga de crochê, tapa-sexo, batina, cueca de oncinha, fio dental, folha de parreira. E, obviamente, seja qual for o corpo.
Por isso prefiro o Carnaval de rua ao de clube, camarote e avenida. Nestes últimos, ainda reina uma exigência estética implacável, como aquela que abateu a rainha da bateria Paolla Oliveira, tachada de velha e gorda, com um corpo exuberando beleza e saúde aos 42 anos.
Neste país que ainda encara a mulher como um objeto para consumo, com data de validade, desfilar a minha bunda cinquentona significa. E significa mais ainda graças ao caráter ordinário dos meus glúteos, que não são os da Paolla Oliveira.
Desfilar minha bunda cinquentona no Carnaval significa que meu corpo não está no mundo para servir de enfeite, mas de veículo para o meu prazer. Que não vou passar calor dentro de uma meia-calça para atender o padrão da indústria da beleza. Que não vou deixar de usar o que gosto só porque estou fazendo 50, 60 ou 70 anos.
Que não vou ter vergonha de exibir a bunda de quem passa oito horas por dia escrevendo. A barriga de quem fez cesariana. A pele de quem perdeu o estrogênio. Significa que vou carregar meu corpo como um porta-estandarte de mim mesma, orgulhosa da carcaça frágil e forte que me trouxe até aqui.
Quando eu estiver andando na avenida São João, a caminho do bloco, quem sabe ainda olharei meu reflexo no vidro de uma das vitrines e ouvirei aquela vozinha tenebrosa a sussurrar mais alguma besteira.
Mas então lembrarei da minha filha e de todas as feministas que abriram alas para mim. Virarei para o lado e verei outras bundinhas tão ordinárias quanto a minha, outros peitos que amamentaram, outras divinas tetas derrubadas pelas mamadas e levantadas pelas purpurinas. Outras barrigas flácidas de histórias para contar. Outras costas nuas por motivo de folia e fogacho.
E também verei homens que tiveram que trabalhar aquele mesmo músculo mental, com suas bundas desbundando livres no país que mais mata quem samba fora da curva no mundo.
Desfilar minha bunda cinquentona no Carnaval realmente significa. Significa inclusive obrigada: hoje só avanço livre por esta avenida porque há anos, e apesar dos tantos empecilhos, avançamos juntos.
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