Luiz Caldas posiciona o violão no colo e dedilha acordes e a melodia de “Aquarela do Brasil”, clássico do cancioneiro de Ary Barroso. Aos 62 anos, com mais de uma centena de discos, o cantor e multi-instrumentista baiano segue o seu mergulho profundo na música, sua maior paixão.
Começou a cantar e tocar nos bailes ainda criança e subiu em um trio elétrico pela primeira vez aos 16 anos. Surgiu para o Brasil de pés descalços, nos programas de televisão, e despontou com um ritmo dançante que se tornaria uma das marcas da música da Bahia.
Desde 2013, iniciou um projeto de compor e gravar um disco por mês, lançando 147 álbuns que percorrem diferentes gêneros musicais. Dentre eles estão “Sambadeiras” e “Remelexo Bom”, indicados ao Grammy Latino de melhor álbum de música de raiz em língua portuguesa em 2021 e 2022.
Este ano, Luiz Caldas celebra os 40 anos do axé music, que tem como marco o lançamento do seu disco “Magia”, de 1985. Nesta entrevista, defende o fim das cordas que separam os foliões no Carnaval, destaca o simbolismo do axé e diz que movimento seguirá em expansão: “o pulso ainda pulsa”.
A Bahia celebra neste Carnaval os 40 anos do axé. Na sua concepção, o que é o axé?
Axé é um movimento musical. É como o Tropicalismo. O Tropicalismo até hoje impacta tudo o que toca porque foi um movimento muito forte, político, que estava ligado ao futuro do país. O axé music já é um movimento de liberdade total. Ele é como o Big Bang. Aconteceu junto comigo naquele momento e até hoje ele está aí se expandindo.
O surgimento axé coincide com final da ditadura. Foi um momento propício?
Foi. Cazuza e Renato Russo berravam aos quatro cantos, de forma poética, o que tinha acontecido. Eu já venho com alegria. Me sinto realizado em poder fazer parte de um movimento musical que nasce justamente na hora em que todo mundo pega uma faca e diz “ditadura não mais” e corta. E essa faca na Bahia é o meu disco “Magia”, ele tem esse simbolismo muito forte. Ele é político também.
O país vive uma ascensão do conservadorismo. Neste ano, tivemos casos de prefeituras que trocaram o Carnaval por eventos religiosos. Como vê esse atual momento?
Acredito que neste momento a gente esteja, no mundo todo, no olho do furacão. Uma tormenta muito grande vem aí porque existem muitas pessoas ruins com um poder gigantesco pelo mundo. A gente vive isso em todos os lugares. São esses confrontos que a sociedade tem que passar para poder se moldar de uma forma bonita e que agrade a todos. Isso é ingrediente mais forte para essa desordem mundial.
E qual o papel da música, da arte, em um momento como esse?
Fazer você sorrir, porque se você ficar sentindo dor o tempo todo, você não aguenta. A arte serve para isso. Ela pode servir, sim, para política, para problemas sociais. Mas não é obrigada a servir a isso, ela tem que simplesmente ser música. E ela, simplesmente sendo música, vai lhe tirar uma alegria genuína. O papel da música é esse, despertar sentimentos. O axé music, especialmente, tem o objetivo de te deixar alegre, fazer você dançar, te tirar desse momento de tensão.
O axé completou 40 anos e há ao menos 30 se fala em crise neste movimento, já decretaram a morte do axé centenas de vezes. Estavam errados?
Isso é falácia. Falar, todo mundo fala. Por isso que eu evito perguntas sobre qual o futuro do axé. Eu não sei o meu futuro. O axé music não precisa de mais nada. [Se há uma] crise, eu também coloco o samba, o rock, o jazz, eu coloco vários estilos de música que não são a bola da vez, comercialmente falando. Mas na hora que você vai ouvir sua música, a bola da vez é o seu gosto.
Você foi um crítico da indústria do Carnaval. Em 2012, você lançou a música “Apartheid do Carnaval”, que fala sobre a “chuva de grana” na festa.
É uma crítica realmente a esse modelo. Mas todo mundo critica o que está sendo transformado, é natural, você está no meio do processo. Eu aproveitei com [o compositor] César Rasec, que é um parceiro maravilhoso, e a gente fez esse olhar crítico que fala desse xadrez, desse jogo para que você leve uma carreira. Porque, quando a gente fala em axé music, o que ele deu e dá financeiramente para o país e gera de impostos e grana, é um absurdo, é muita grana. Então, por esse motivo, muitas vezes surge essa conversinha de que tem uma crise aqui, tem outra ali, talvez por ter vendido menos, mas isso não quer dizer que você tenha acabado. O pulso ainda pulsa.
Essa queda das cordas que separa os foliões, você vê como um caminho inevitável, com o povo reivindicando a rua?
Eu acho que é uma coisa que deveria acabar, sim. Se há condições para que os artistas tenham trios bons para tocar para a pipoca [foliões que desfilam sem pagar por abadás], é uma boa. O Carnaval iria respirar. É como você chegar em uma festa e poder afrouxar a gravata.
Acha possível equacionar o financiamento da festa?
Rola muito dinheiro, meu irmão. O Carnaval é uma festa gigantesca, ninguém está falando aqui de aniversário de 15 anos, não. Eu estou falando de uma festa que vem muito dinheiro com patrocínio. Claro que é uma festa cara para você bancar, mas se ajustar todo mundo ganha bem e fica satisfeito. E a festa só faz crescer, porque a gente tem um Carnaval que é maravilhoso. A diversidade musical que você encontra só na Bahia, isso eu não estou dizendo que os visitantes não venham. Podem vir, são bem-vindos sim. Mas só a nossa diversidade já faz um Carnaval da porra e todos sabem disso.
O Carnaval também vive uma ascensão dos megacamarotes, alguns até em áreas públicas da cidade. Você acha que é um setor que deveria contribuir mais com a festa, em termos financeiros?
Eu acredito que eles já pagam impostos para poderem estar ali. Se está tudo dentro da lei, não vejo nada errado. Também poderia se pensar [em espaços] para quem quer fazer um negócio particular, poderia ter uma área onde pudesse ter um blocódromo. Outros artistas se dão bem no modelo de ir para a rua com a pipoca. Eu mesmo já faço isso há muitos anos. A pipoca de Saulo é fora de série. Tem [o cantor Igor] Kannário, BaianaSystem. Isso para não falar de pipocas como a de Bell [Marques] e Ivete [Sangalo], a gente sabe a dimensão que isso tem. Onde todos ganham, eu não vejo problema nenhum.
Há alguns anos se fala na possibilidade do circuito no Carnaval de Salvador, na orla da Boca do Rio. Seria uma alternativa?
Como espaço, o lugar é maravilhoso, é bem espaçoso para o trio. Mas não se cria um percurso de uma hora para a outra. Não é um decreto, não é? Não vai ser a vontade só de um político que vai mudar. É uma coisa que tem que ser muito bem discutida. Se a gente precisa transformar? Transforma, mas sem agressão.
Outro debate é a falta de visibilidade dos blocos afro e o fato de o axé ter se afastado de uma de suas principais vertentes, o samba-reggae. Acha que o axé, de certa forma, embranqueceu ao longo do tempo?
Não tem isso de embranquecer ou escurecer, de forma nenhuma. Eu acho que a música é livre e deve permanecer assim. As pessoas têm que tocar e cantar o que estão a fim de fazer. O axé music foi batizado com um nome que é totalmente africano, é negro, é da raça negra, é de uma religião negra. [O nome] nasce de uma brincadeira, uma cutucadinha, porque eu brincava muito com os roqueiros daqui de Salvador na década de 1980. Ele é branco, tem Elvis, mas ele também é preto, tem Little Richard. É um movimento musical que engloba todo mundo. O axé music não existe sem Neguinho do Samba, mas principalmente sem o disco “Magia” de Luiz Caldas, ele não começa. Então, a gente tem que respeitar tudo isso, e essa coisa toda não tem cor. Tem música, tem sangue e tem raça para poder fazer música boa.
Você então considera secundários os debates…
Devem existir, mas não para dizer “você não pode isso” ou “você tem que fazer”. Se eu posso, está dentro da lei, por que não? A gente vive em sociedade e tem que respeitar o que está determinado ali. Se a gente quer mudar, vamos lutar e mudar juntos.
É legítimo se um artista mudar a letra de uma música?
Cara, se Roberto Carlos muda tantas letras… É uma licença que o intérprete tem. O intérprete tem esse poder, de se apoderar mesmo da canção. Se ele cantar com tesão, já foi, a música é dele. Não vejo problema nenhum nisso, não.
Você parou tocar a música “Fricote” após críticas sobre trechos de cunho racista. De certa forma, não se adequou?
Não mudei a música, o passado ninguém muda. Se está ferindo alguém, de boa, eu não vou dar continuidade. Música é diálogo, o artista dialoga com a plateia. Olha o tanto de gente que sai de casa para me ver, feliz. Aí eu chego no palco e canto uma música que vai deixar uma parcela daquelas pessoas, que estão felizes, aborrecidas. Por que eu vou fazer isso? Não vejo sentido nenhum. “Fricote” é uma música fora de série? É, porque ela marca um início que muita gente se deu bem. Muita gente branca, muita gente preta, de todas as cores. Não faço política em meu show. Meu show é uma festa minha onde as pessoas vêm celebrar a minha música.
O cancioneiro do axé virou clássico?
É um caldeirão maravilhoso. Com o cancioneiro do axé music, você faz quatro, seis horas, oito horas sem repetir uma música. E todo mundo se acaba de dançar e de cantar junto. Então, é um caldeirão que fervilha, ainda está muito quente. Quem pega, ainda se queima.
RAIO-X | LUIZ CALDAS, 62
1963, Feira de Santana (BA). É cantor, compositor, produtor musical e multi-instrumentista. É um dos precursores do axé music, que tem como marco o lançamento do disco “Magia”, de 1985. Foi indicado ao Grammy Latino de melhor álbum de música de raiz em língua portuguesa em 2021 e 2022 pelos álbuns “Sambadeiras” e “Remelexo Bom”.