Nazaré da Mata abriga a maior festa do maracatu rural – 04/03/2025 – Cotidiano

O casario simples, as pequenas criações de cabra na área urbana, os arredores tomados pelo verde do campo e das matas, tudo parece se neutralizar diante do colorido de tons berrantes que dominam cada pedacinho da praça da Catedral. É Carnaval, momento festivo em que impera uma figura singular de flor branca na boca: o caboclo de lança, personagem icônico do maracatu rural, também conhecido como maracatu de baque solto.

O movimento é intenso em Nazaré da Mata. Nestes dias de folia, a cidade com cerca de 30 mil moradores vê a sua população dobrar por causa do Encontro Nacional de Maracatus Rurais. Cerca de 20 grupos que desfilam por ali são do próprio município. Outras 15 agremiações vêm de cidades vizinhas, como Vitória de Santo Antão, Tracunhaém e Araçoiaba.

O caboclo de lança exibe um figurino instigante. Símbolo de proteção física e espiritual, a lança de madeira que ele carrega mede pouco mais de 2 metros. O instrumento é adornado com fitas coloridas e abençoado em terreiro. O chapéu, coberto de chicotes, como são chamados os “cabelinhos coloridos”, refletem a luz do sol. A parte superior do corpo é adornada por uma manta, a gola, que possui formato semelhante ao de um poncho, toda ela trabalhada na lantejoula.

“Muitas golas, com os seus desenhos coloridos, consomem mais de 25 mil lantejoulas. Sua confecção exige tempo, habilidade e muita paciência”, explica Anderson Miguel, 29, mestre do Maracatu Cambinda Brasileira, um dos mais tradicionais do país.

O grupo existe há mais de um século e tem sua sede no Engenho Cumbe, zona rural de Nazaré da Mata.

Miguel, que também é músico de uma banda de forró, conta que os desfiles dos grupos de maracatu são uma vitrine importante de exibição da riqueza dessa manifestação única.

O encontro, segue ele, é um exemplo que revela como o espetáculo vem sendo preparado minuciosamente desde o primeiro dia após o término das festas juninas. “No dia seguinte, quando acaba o São João, a gente começa a trabalhar de olho no Carnaval.”



A tradição foi passando de pai para filho: desde a confecção das vestimentas, as danças, as evoluções e manobras, os versos improvisados, o uso de instrumentos de sopro e percussão, tudo isso a gente aprendeu com os mais velhos

Localizada a cerca de 70 km do Recife, Nazaré da Mata é considerada a terra do maracatu, uma manifestação popular composta de dança, música e poesia, associada ao ciclo canavieiro da zona da mata pernambucana. Sua origem remonta ao século 19.

Os maracatus mais tradicionais nasceram em engenhos de cana-de-açúcar, criados por negros escravizados, e consistem em uma mistura de diversos folguedos populares. Desde 2014, é considerado patrimônio cultural imaterial do Brasil.

Nos maracatus rurais, os caboclos de lança são símbolos da cultura pernambucana. Além da lança e da flor branca na boca, desfilam com camisas estampadas de mangas longas e calças de chita com franjas. Geralmente, têm os rostos pintados e usam óculos escuros. Nas costas, eles carregam um surrão com chocalhos. Há ainda o maracatu nação ou de baque virado, cuja presença é maior em áreas urbanas. Enquanto ele representa a coroação de rainhas e reis africanos, o maracatu rural segue com seus vínculos atrelados ao universo do engenho.

“Muitos fundadores eram trabalhadores rurais, cortadores de cana”, conta Miguel. “A tradição foi passando de pai para filho: desde a confecção das vestimentas, as danças, as evoluções e manobras, os versos improvisados, o uso de instrumentos de sopro e percussão, tudo isso a gente aprendeu com os mais velhos”, explica. Ele próprio integra a terceira geração de maracatu da família.

Atualmente, o Maracatu Cambinda Brasileira concentra 160 integrantes. De acordo com Miguel, de todos os gêneros. “Estamos abertos. Tem homem, mulher, trans.”

Nem sempre foi assim. Eliane Rodrigues, de 67 anos, 21 deles de maracatu, explica que até os anos 1960 era proibida a participação de mulheres. “Mas aí, foram abrindo para as personagens femininas, como a baiana e a dama do passo, responsável por carregar, durante os cortejos, a calunga, boneca que representa entidades espirituais ou ancestrais.”

Rodrigues é presidente da Amunam (Associação das Mulheres de Nazaré da Mata). Criada em 1988, a entidade reúne 1.600 mulheres —o grupo é composto majoritariamente de trabalhadoras rurais e atua em atividades culturais como coco de roda, ciranda e, é claro, maracatu.

Por força do destino, problemas nas costas tiraram Rodrigues dos desfiles. Hoje, ela continua atuando, mas nos bastidores do Maracatu Coração Nazareno, agremiação criada em 2004, exclusivamente por 68 mulheres.

“Para nós, o maracatu representa resistência, o empoderamento feminino e é, sobretudo, uma maneira de inserir as mulheres em políticas públicas. É também uma maneira de celebrar nossa história e ancestralidade”, diz ela, enquanto analisa com atenção cada detalhe da vestimenta das colegas de Nazaré.

Todo Carnaval tem seu fim. Quando este terminar, outra devoção entra em cena: a de se dedicar a reparos nos trajes coloridos, mesmo que essa tarefa seja executada após uma jornada exaustiva na lida da cana.

Os jornalistas viajaram a convite da Empetur (Empresa de Turismo de Pernambuco)

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