Carnaval de 1945 teve samba antinazismo e morte em desfile – 05/03/2025 – Cotidiano

O comissário do distrito policial anotou na ficha: José de Oliveira, 25, apelido Matinadas, morador da rua do Encanamento, no morro do Salgueiro, morreu no dia 4 de fevereiro de 1945 vítima de um golpe de faca na altura do peito.

Não houve perícia porque a cena do crime era de impossível preservação. O assassinato, diante de milhares de pessoas, ocorreu no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, durante um desfile de escolas de samba organizado por uma associação carnavalesca a uma semana do feriado do Carnaval.

Matinadas era compositor da Depois Eu Digo, agremiação que, em 1953, se juntaria a outras para fundar o Salgueiro. A morte do sambista, que completa 80 anos em 2025, é cercada de mistério e desencadeou prisões e desavenças.

Acelino dos Santos, conhecido como Bicho Novo, maior mestre-sala da era romântica do Carnaval, foi acusado do crime e preso na casa da mãe dois dias depois. Bicho Novo foi o mestre-sala da Deixa Falar, dita primeira escola de samba do país, no bairro do Estácio de Sá, entre 1928 e 1931.

Testemunhas contaram que a briga de morte se deu entre um mestre-sala da Cada Ano Sai Melhor, uma escola de samba do Estácio, e componentes da Depois Eu Digo. A polícia foi atrás do mestre-sala mais conhecido da região —Bicho Novo. Ele foi preso negando o crime e passou quatro meses no presídio de Ilha Grande, no sul fluminense.

“Quem matou o Matinadas foi o Ferrugem”, diz Adilson de Almeida, 83, filho de Manoel Bacurau, um dos fundadores da Unidos do São Carlos, hoje chamada de Estácio de Sá.

Ferrugem foi mencionado em jornais da época como malandro e passou dias preso, mas a polícia nunca concluiu o caso.

Adilson, quando menino no Estácio, conviveu com os tais malandros. A maioria vivia de pequenos golpes na zona do mangue, região de prostituição.

“Com as crianças eles eram normais. Pagavam sorvete, davam bala, compravam figurinha. Só eram maus contra inimigos. Essa turma de malandros frequentava a casa do meu pai. Chegavam de madrugada e comiam conosco um ovo frito, ou um bife”, conta ele.

Alguns malandros eram sambistas e lideravam as agremiações. Os desfiles eram organizados por jornais e associações.

Palco de discursos inflamados do então presidente Getúlio Vargas, o estádio de São Januário recebeu naquele ano de 1945 mais de 20 escolas de samba, sob organização da União Geral das Escolas e patrocínio do jornal Folha Carioca.

Na semana seguinte, a UNE (União Nacional dos Estudantes) organizou na avenida Rio Branco um campeonato em que a Portela foi campeã, com Mangueira em segundo.

Em comum aos desfiles havia a regra de que todas as escolas deveriam se apresentar com temas patrióticos — uma profusão de Duque de Caxias, Dom Pedro, soberania nacional e belezas naturais do país.

A determinação vinha do fim da década de 1930, com o plano nacionalizante do governo Vargas e se consolidou em 1943, ano seguinte à declaração de guerra do Brasil ao Eixo, na Segunda Guerra Mundial.

“Modernistas entraram no governo Vargas com a visão de que o verdadeiro Brasil estava entre as classes mais pobres. Vargas tentou estabelecer uma liderança carismática e fez um uso político do Carnaval e das escolas de samba. Ao mesmo tempo, sambistas como Paulo da Portela tinham ligação com partidos de esquerda, comunistas”, afirma Mario Brum, professor de história da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

O período entre 1943 e 1945 é conhecido como Carnavais de Guerra e gerou sambas considerados hoje pitorescos.

O samba da Mangueira de 1945 é registrado com versos como “Eu parti para defender o meu Brasil/E foi com grande prazer que ergui meu fuzil”. O da Portela de 1943 tem na estrofe final: “Abaixo o Eixo/Eles amolecem o queixo/A vitória está em nossa união”.

“Em 1945 os desfiles acontecem neste esforço de glorificar o Brasil. O Carnaval foi no começo de fevereiro, e a Alemanha ainda não tinha sido derrotada. Seria somente em maio. Em 1946 houve o Carnaval da Vitória, da comemoração da derrota nazista”, completa Brum.

Sambas da época se perderam e muitas agremiações deixaram de existir. Eduardo Pinto, diretor cultural do Salgueiro, afirma que os registros da década de 1940 são restritos a poucas fotos.

“Por outro lado, o Salgueiro, das famosas quatro escolas, junto com Portela, Mangueira e Império Serrano, é a agremiação mais nova [de 1953], então temos todos os sambas registrados, em excelente qualidade”, afirma.

A morte de Matinadas, registrada em pés de página dos jornais cariocas da época, ficou sem final definitivo, mas versões circularam.

A versão do compositor salgueirense Duduca, contada ao jornalista Sérgio Cabral na década de 1970, é de que Matinadas foi morto por engano. Numa confusão dias antes do desfile, numa festa de escola na Tijuca, um componente do Salgueiro chamado Levi havia assediado uma jovem da agremiação Cada Ano Sai Melhor. Por galhofa, Levi foi embora gritando “eu sou o Matinadas”. Matinadas, no entanto, sequer estava na festa.

Ao chegarem ao campo do Vasco, componentes da Cada Ano Sai Melhor partiram direto em direção ao grupo da Depois Eu Digo para tirar satisfação. Procuraram por Matinadas, e o compositor, sem saber da história pregressa, se apresentou.

Outra versão é de que um mestre-sala da Cada Ano Sai Melhor teria puxado uma porta-bandeira do Salgueiro para dançar durante o desfile —era um hábito entre as agremiações, mas que deu confusão. Matinadas teria sido atingido na confusão.

Além da morte de Matinadas, dez pessoas ficaram feridas, entre eles operários, estudantes e até um soldado do Exército que desfilava.

O episódio causou rivalidade e luto. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em 1992, Bicho Novo contou que nos anos seguintes, quando o Salgueiro passava pelo bairro do Estácio de Sá para se apresentar no centro da cidade, os moradores, por medo de represália, corriam para dentro de casa e as ruas ficavam desertas.

A rixa, contudo, não atravessou as décadas. “À medida que as escolas de samba do Rio passaram a sair de seus morros e bairros e tomaram o gosto popular, se espalhando pelo resto da cidade, essa tensão foi se enfraquecendo”, afirma Eduardo Pinto, diretor cultural do Salgueiro.

Bicho Novo teve 12 filhos, 36 netos e 17 bisnetos. Trabalhou como bombeiro hidráulico e engraxate, e desfilou como mestre-sala da Estácio de Sá até 1988. Em 1992, foi campeão do Grupo Especial. Morreu em 1993, aos 84 anos.

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