Uma auxiliar de limpeza de 30 anos foi agredida pelo marido no fim da noite de um domingo de maio dentro de casa. Em julho, também em um domingo, outra mulher de 25 anos foi perseguida na parte da noite, em uma via pública, por um homem com quem ela tinha um envolvimento amoroso. Aos 27, uma cabeleireira sofreu tentativa de homicídio do homem com quem mantinha uma união estável, na madrugada de um domingo de setembro.
Casos de violência contra mulheres acontecem todos os dias. Em média, 357 deles foram registrados diariamente em São Paulo em 2024. Porém, domingos à noite são os períodos de maior incidência de crimes de gênero na cidade. É o que indica uma análise realizada, na capital paulista, com o registro de 101 mil boletins de ocorrências de violência contra a mulher no ano passado.
O número de casos pode ser ainda maior, uma vez que mais de um crime pode ser registrado no mesmo boletim de ocorrência —nem todos citam violência doméstica, apenas 40 mil deles. Os dados foram obtidos por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
Maíra Recchia, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OAB-SP, observa que a incidência está ligada a fatores que contribuem para agressões, entre eles o convívio mais próximo aos finais de semana e aumento no consumo de bebidas alcoólicas e drogas. “São os principais catalisadores das violências”, afirma a advogada.
No ano passado, os crimes mais recorrentes foram de ameaça, injúria e lesão corporal. Do total de ocorrências, apenas 40% possuem dados da relação da vítima com o agressor —dessas, 81% são pessoas que tinham algum tipo de relacionamento amoroso com a mulher e 14% algum grau de parentesco.
A faixa etária que mais sofre violência é a de 25 a 45 anos, com 54.750 ocorrências, o que representa mais da metade dos registros com essa informação. Além disso, a maioria dos locais dos crimes acontecem vias públicas (60.488) —mais que o dobro do que em residências (29.789) e na internet (1.522).
Mais de 5.000 ocorrências envolvem menores de idade e quase 7.000 são contra idosos (sendo 411 com mais de 80 anos). Nos dados extraídos, há casos de mulheres de mais de 90 anos que foram vítimas de estupro até crianças de menos de 1 ano de idade que sofreram lesão corporal e abuso sexual.
A demógrafa Jackeline Romio explica que mulheres costumam ser alvo de diferentes tipos de violências de acordo com a idade. Ou seja, meninas até 14 anos geralmente são vítimas de estupro de vulnerável (39,7%), lesão corporal (20%) e maus-tratos (10%).
Já jovens de 15 anos a mulheres de 29 anos enfrentam maior risco de violência em via pública e de parceiros ou ex-parceiros.
A partir dos 30 anos, elas são mais vitimizadas na residência por parte de parceiros ou ex-parceiros, enquanto idosas vivenciam tanto a violência intrafamiliar, semelhante às meninas, quanto a persistência da agressão por parceiros e ex-parceiros íntimos, como ocorre com jovens e adultas.
“Esses padrões reforçam a necessidade de políticas específicas para faixa etária, considerando os diferentes contextos de risco”, diz a demógrafa.
Segundo Romio, o caráter interpessoal da violência de gênero dificulta sua erradicação, uma vez que estão ligadas as relações desiguais de poder. Para a demógrafa, a solução exige ações multissetoriais, assim como a transformação das normas sociais. Também é importante que sejam levadas em questão as vulnerabilidades associadas à idade, classe social, raça/cor, território e outros fatores de desigualdade, que ampliam a incidência da violência entre grupos marginalizados.
A maioria dos casos foi registrada no 47º DP (Capão Redondo), localizada na zona sul de São Paulo, onde foram computadas 2.415 ocorrências de violência contra a mulher no ano passado. A Folha esteve no local e presenciou a chegada de mulheres vítimas de agressões durante um dia.
Outras delegacias também registram altos índices de registros, como os da zona norte. Na região, o 73º DP (Jaçanã) soma 2.220 ocorrências, e o 46º DP (Perus), 2.140.
Apesar de os registros não refletirem, necessariamente, o local onde vítimas residem, Romio diz ser comum que essas regiões também apresentam altos índices de outras violências, como a violência letal e econômica. Por isso, a violência de gênero apresenta uma espécie de interseccionalidade de vulnerabilidades e intensifica os riscos para mulheres periféricas, especialmente as jovens.
A SSP (Secretaria de Segurança Pública) do estado diz que a ampliação das políticas públicas voltadas à proteção das mulheres tem contribuído para o aumento das denúncias relacionadas a esse tipo de crime —em 2024, foram registrados 191 mil casos de violência doméstica em todo o território estadual, contra 182 mil em 2023.
A pasta ainda enumera, sem detalhar o cenário na capital paulista, que o atendimento nos plantões policiais foi expandido com a implantação de 162 Salas DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) 24 horas anexas a plantões policiais e Delegacias Seccionais. Também diz que o estado possui 141 DDMs e prevê a inauguração de novas unidades —porém, não específica quando, quantas e nem onde.
Entre as medidas incluídas para proteger vítimas de violência são citadas a Cabine Lilás, o aplicativo SP Mulher Segura e a ampliação do monitoramento de agressores por tornozeleira eletrônica. Denúncias podem ser feitas em qualquer delegacia, por meio do 190 ou 180, que atende de forma anônima e gratuita.
Para Maíra Recchia, da OAB, os dados de violência contra a mulher apontam para uma sociedade machista. “Se temos leis para tudo, não é sinal de sucesso, mas de fracasso. Temos que ensinar para um homem que não pode tocar no corpo da mulher sem o consentimento, isso significa que falhamos na base”, afirma.
A advogada defende que para melhorar um cenário de ampla violência de gênero, é necessário uma mudança cultural e estrutural. “Precisamos que a sociedade entenda que as mulheres têm direitos. Elas não são objetos de prazer ou objeto de poder do gênero masculino”, diz.