Deficiência e a ignorância viral – 09/03/2025 – Haja Vista

Chegou o meu momento de ter meus quinze minutos de fama. Só que, em 2025, os quinze minutos já são mais curtos, para caberem na duração de um Reel de Instagram.

A bem da verdade, minha atuação no filme valeria, se muito, um prêmio como ator coadjuvante ou, no máximo, uma estatueta pela capacidade de fazer rir. No vídeo, minha noiva se esforça para me dar dicas básicas de cozinha, enquanto eu me esforço para fazer o mínimo de bagunça possível. Terminamos com uma tapioca apetitosa, mas faltando um pedaço, que ficou preso na frigideira, e a pia toda enfarinhada.

Seja pela graça de nossa interação, seja pela curiosidade de verem dois cegos em ação, foram até agora 1,8 milhão de visualizações e 1.700 comentários.

Eu tendo a acreditar que a maioria das pessoas não são hostis a nós, cegos. E furar a bolha fazendo trapalhadas não me fez mudar de opinião. Os comentários ofensivos foram a minoria. A maior parte das reações foi positiva, de incentivo ao aluno e à professora no processo de ensino-aprendizagem e ao casal na parceria. Mesmo assim, a experiência de me expor na rede me aguçou preocupações.

Não fomos capazes de responder a todas as pessoas que perguntávamos como poderíamos estar mexendo nas redes sociais. Muitos pediam que alguém lesse para nós os comentários, presumindo que não seríamos capazes de fazer isso por conta própria e outros se espantavam quando viam respostas nossas no meio da conversa. Inúmeros questionaram: “Mas como você está lendo”?”

Foram muitas as curiosidades. Como identificam alimentos na cozinha? Como sabem se o fogão está aceso? Por que temos luzes em casa? Como sabem que estão filmando? Como sabem o que é a frente?

Fiz o meu melhor para explicar o básico sobre a vida cega. Que um programa no celular lê o que está na tela pra gente, que reconhecemos as coisas pelo tato e, quando não é possível, tem aplicativo para isso, que dá para saber se o fogo está aceso pelo calor, que acendemos a luz quando tem visita em casa, que a pessoa que está gravando nos avisa quando aperta o botão para começar e que a frente é para onde aponto meu nariz.

Não soube porém como responder a dúvida sobre como os cegos sabem que estão acordados. Sugiro convocar uma junta de filósofos e cientistas para revisitar a questão. Afinal, pessoas com visão quando acordadas também enxergam os sonhos, pelo que me consta, então a visão não é lá um bom sentido para diferenciar a vigília e o sono. Sugiro voltar à velha técnica de dar um beliscão em quem está na dúvida.

É ao mesmo tempo estimulante e estarrecedor interagir com essa galera anônima.

Dá a sensação de fazer algo útil ao iniciar uma conversa da cozinha da nossa casa com a esperança de preparar mais gente a interagir com pessoas com deficiência como nós. Por outro lado, é espantoso que o assunto ainda esteja tão no começo e seja preciso partir sempre do básico. Mesmo os jovens que já nasceram com o smartphone na mão não tem ideia de que podem estar conectados com alguém que não enxerga e interagir com essa pessoa em igualdade de condições?

Quando se fala em deficiência visual, a ignorância ainda é o verdadeiro viral que circula por aí há muito tempo. e precisa ser combatido com urgência a partir de mais convivência, educação e ocupação das timelines da garotada.


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