Há 50 anos, então um garoto de 17 anos, eu cheguei ao cemitério, vindo das férias subitamente interrompidas, para enterrar meu pai. Encontrei minha mãe e meus irmãos arrasados. O susto e a tristeza daquela morte inesperada trouxeram a angústia e a incerteza em relação ao futuro. Meu pai, então com 47 anos, era o principal provedor da família. Ao ver minha mãe tão abalada temi que ela não tivesse estrutura para enfrentar o que vinha pela frente.
Dois anos antes, sentindo que os filhos já estavam crescidos, ela retornou à sua atividade profissional e, formada em farmacologia, foi trabalhar no Instituto Butantan. Ali, como pesquisadora fez parte da equipe que descobriu uma substância presente no veneno da jararaca, que é utilizada até hoje nos medicamentos para pressão alta. Bella Regina sempre se orgulhou dessa descoberta reconhecida mundialmente.
Para enfrentar os novos tempos, foi auxiliada por minha avó e por amigos solidários e generosos. Assim, conseguiu se reequilibrar e construir um novo dia a dia para a nossa pequena família.
Sempre interessada na vida dos filhos e em prover o que fosse necessário, nunca deixou de frequentar cinemas e ir atrás dos filmes que adorava, dos museus e dos concertos.
Minha mãe era uma leitora assídua de jornais e sempre se posicionou à esquerda.
Me lembro quando sugeriu a uma vizinha da rua em que morávamos no Jardim Paulista, na zona sul de São Paulo, a orientar a filha de 16 anos para o uso da pílula anticoncepcional, deixando a mulher estupefata. Inconformada Belinha se perguntava em que mundo a mulher achava que estava, eram os anos 1970!
Minha mãe gostava de conversar sobre política comigo e sobre certos fatos ou artigos que ela dizia não compreender. Sempre quis participar e estar por dentro do que se passava no país. Nunca deixou de votar. Nas eleições de outubro passado, já bastante debilitada, se programou para exercer o seu voto —iria de cadeiras de rodas levada por minha irmã. Porém, um incidente doméstico a impediu de ir.
Minha mãe era uma pessoa apaixonada pelas coisas, principalmente pelas coisas que os filhos faziam, como toda “yddishe mama”. Muitas vezes chegou a penhorar os poucos objetos em momentos de dificuldade.
Posso afirmar que graças à sua sensibilidade, seu gosto pelas artes, acabei me dedicando ao cinema. Muito do mundo sensível que eu trago, devo a ela.
Bella Regina era uma pessoa muito engraçada e adorava dar suas boas gargalhadas, até mesmo em momentos terríveis como o ocorrido em 1986. Após longas negociações com uma construtora conseguimos vender muito bem a casa que tínhamos —único bem de maior valor que meus pais haviam financiado depois de anos de trabalho. No dia seguinte ao da assinatura do contrato da venda, o governo Sarney divulgou a famosa “tablita”, que desvalorizava progressiva e significativamente todos os pagamentos a serem recebidos.
Minha mãe que já sonhava com a compra de uma nova casa confortável e de um sitiozinho próximo a São Paulo, ao ouvir a notícia, percebeu incrédula que todos os planos tinham ido por água abaixo. Enquanto nós xingávamos e maldizíamos as loucuras desse país, pouco a pouco, minha mãe começou a rir sem parar, acredito que também de nervoso. Acabou contagiando a todos nós que rimos até perder o fôlego. O que se poderia fazer além disso? E assim a vida seguiu.
Bella Regina Kupper Gervitz morreu no último dia 28 de fevereiro, aos 94 anos. Viúva de Luis Gervitz, deixou os filhos Roberto, Marcelo e Betty, e as netas Isabel e Luiza.
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