A Bíblia de Trump é a mesma que você tem em casa? – 14/02/2025 – Cotidiano

A relação entre Donald Trump e seus eleitores cristãos é um motivo de espanto. Como alguém que não pratica sua fé, tem uma postura agressiva e se casou várias vezes pode ser apoiado por eles? Um dos motivos pode ser o fato de Trump tratar a Bíblia como um objeto simbólico, independentemente do que está escrito nele.

As mensagens do texto bíblico aparecem pouco em seus discursos. Mas há uma outra dimensão que Trump soube explorar com sucesso: a Bíblia como um ícone, como um objeto dotado de uma sacralidade capaz de transferir ao líder político uma aura extraordinária, a de ser o ungido por Deus para realizar a sua vontade na Terra.

Um exemplo ocorreu em junho de 2020, durante os protestos contra a morte de George Floyd, um afro-americano assassinado pela polícia durante uma detenção. Foi um dos momentos mais dramáticos do governo Trump, com a capital sendo sitiada por multidões de manifestantes que foram brutalmente reprimidos. E o que fez o presidente?

Trump marchou da Casa Branca até a frente da Igreja São João, chamada de igreja dos presidentes. Praticamente não falou nada e não citou nenhum versículo bíblico. Apenas posou para fotos durante vários minutos, segurando uma Bíblia. O efeito pretendido, vincular Trump à Bíblia, estava garantido e a imagem correu o mundo.

Esse é um dos aspectos fascinantes da trajetória da Bíblia e de sua influência ao longo da história. Não apenas o texto e sua mensagem foram considerados de natureza divina. A Bíblia como objeto físico também foi revestida de aspectos sagrados.

É um processo que teve início no próprio judaísmo. E a valorização da Bíblia como um símbolo aumentou à medida que as imagens divinas —como as estátuas e pinturas— eram depreciadas e mesmo proibidas, de acordo com o segundo mandamento.

Com a destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 e o aparecimento das sinagogas, os rolos de pergaminho da Torá passaram a sinalizar a presença da divindade em cada local de culto disperso pelo Oriente Próximo e pelo Mediterrâneo.

A natureza sagrada dos textos bíblicos fez com que sua produção fosse cercada de cuidados especiais. Os animais que forneciam a pele dos pergaminhos eram sacrificados ritualmente e o ato de escrever era acompanhado de orações que garantiam sua pureza.

Quando não podiam mais ser utilizados pelo desgaste, os textos sagrados eram depositados em uma “genizá”, esperando para serem sepultados seguindo um rito solene.

O cristianismo nascente resgatou o uso das imagens sagradas, gerando figurações abundantes de Deus, de Cristo e dos santos. Mas também manteve a ideia de sacralidade do livro. Durante a Idade Média, arte e escrita se fundiram para gerar obras que expressavam a excepcionalidade da Bíblia como objeto icônico.

Manuscritos da Bíblia foram realizados com grande apuro da técnica de caligrafia e ornados com ilustrações requintadas, por vezes com aplicação de ouro, como se vê nas iluminuras.

Com a multiplicação das Bíblias impressas, a partir do século 16, ocorreu uma certa banalização que diluiu a importância da Bíblia como um artefato sagrado. Nos séculos seguintes, a posse do livro deixou de ser um monopólio das instituições religiosas ou de soberanos e pessoas ricas, tornando-se presente cada vez mais nas casas das famílias.

Mas essa difusão não esvaziou completamente a ideia de que a Bíblia é um símbolo em si, para além de seu conteúdo escrito. A utilização política da Bíblia procura aproveitar essa dupla dimensão. De um lado, faz uma seleção orientada ideologicamente de algumas mensagens do texto. De outro, investe na imagem da Bíblia como uma espécie de peça publicitária.

Essa estratégia fluida tem um enorme potencial para líderes populistas da extrema direita como Donald Trump. Ela cria um vazio que o eleitorado religioso preenche com a sua visão de mundo. E essa visão tem sido predominantemente reacionária e intolerante, avessa à diversidade e à solidariedade para com o próximo.

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