O movimento que despontou nos anos 1980, chacoalhou a indústria fonográfica e reinventou o modo de se fazer Carnaval no Brasil atingiu sua maturidade. Aos 40 anos, após ter a morte decretada sucessivas vezes, contrariou expectativas e segue vivo ainda lá.
A partir desta quinta-feira (27), dia que marca o início oficial do Carnaval de Salvador, a axé music será a dona da festa e tomará a avenida na alta voltagem dos trios elétricos. Mas não reinará sozinho: dividirá espaço com o pop, o funk, o samba, o arrocha e o pagodão baiano.
Os hits de verão já são mais raros, mas o repertório se consolidou no panteão de clássicos do Carnaval brasileiro. Em metáfora do maestro Letieres Leite (1959-2021), o que era uma chama desproporcional segue acesa em um fogo brando, consistente e que dificilmente vai se apagar.
Mais que um gênero, a axé music é um movimento que une estilos como o samba-reggae, o ijexá, o frevo baiano, o galope, a salsa e o merengue. Foi um encontro de artistas de diferentes matizes que se cruzaram na Bahia dos anos 1980.
A escolha de um marco inicial foi tarefa árdua. Ele poderia estar no surgimento do trio elétrico em 1950 ou na ascensão dos blocos afro a partir de 1979. Mas o tempo coroou o disco “Magia”, lançado pelo cantor Luiz Caldas há 40 anos.
O álbum abrange diferentes gêneros e teve como mola propulsora a música “Fricote”, que ganhou o Brasil em 1985 após participações de Luiz Caldas no programa Cassino do Chacrinha. O jovem de cabelos cacheados e pés descalços trouxe uma música dançante, recheada de riffs grudentos de teclado e uma batida percussiva que tinha a marca da Bahia.
“Eu resolvi dançar e dançar como eu via a galera dançando embaixo do trio. Meti dança, meu irmão. Só precisou uma vez, foi instantâneo. Aí a chave da música da Bahia deu uma virada”, afirma Luiz Caldas.
Conforme aponta a antropóloga Goli Guerreiro no livro “A Trama dos Tambores: A Música Afro-pop de Salvador”, o axé vem de duas raízes distintas. A primeira está no frevo baiano, trilha dos trios elétricos de Dodô e Osmar que perdurou com Armandinho e Moraes Moreira.
A outra raiz está nos blocos afro criados a partir de 1974. O Ilê Aiyê foi o primeiro, seguido do Badauê, Malê Debalê, Olodum, Ara Ketu e Muzenza. Eminentemente percussivos, em sua maioria não usavam instrumentos melódicos e tinham os tambores como protagonistas de suas canções.
As duas vertentes conviviam nos Carnavais e se fundiram em experimentações feitas por artistas, músicos e produtores na gravadora WR, do empresário Wesley Rangel. Ele foi pioneiro ao montar uma estrutura de ponta na Bahia e ousou ao levar os tambores dos blocos afro para os estúdios de gravação.
O nome axé music viria em 1987, em uma chacota de Hagamenon Brito, crítico musical do jornal A Tarde. Em artigo, ele ironizou a estética dos artistas daquela nova música baiana e fez um trocadilho com o gênero world music. O axé, palavra do iorubá, significa força, energia.
O samba-reggae foi fermentado nas ruas do Pelourinho, sob a batuta de Neguinho do Samba, então maestro do Olodum. O músico teve papel determinante na criação de uma nova sonoridade, que resultaria em hinos do Carnaval baiano como “Faraó” (1987) e “Protesto do Olodum” (1988).
Esta última foi composta por Tatau, que anos depois se destacaria no Ara Ketu “Eu já entendia a força do Olodum naquela época. O bloco mobilizava, saia gente de todos os bairros de Salvador para ir ao ensaio”, lembra o cantor.
A novidade despertou a atenção do restante do país. Em janeiro de 1988, a Folha publicou uma reportagem que mostrava a influência do reggae nos blocos afro e decretou: “A Bahia virou Jamaica”.
Artistas como Sarajane e Margareth Menezes mergulharam na riqueza musical dos bairros negros de Salvador. Em 1992, Daniela Mercury debutou em São Paulo com o icônico show no vão livre do Masp e depois causou espanto com o álbum “O Canto da Cidade”.
“A gravadora não queria que eu fizesse samba-reggae, achou que era uma música regional que não ia para lugar nenhum. E eu disse para eles que era o fenômeno mais importante que tinha surgido na música popular brasileira”, lembra.
Os anos 1990 e 2000 consolidaram artistas como Netinho, Ivete Sangalo e bandas como Asa de Águia e Chiclete com Banana. Em paralelo, a música negra ganhava impulso com a ascensão de Olodum, do Ara Ketu e com a criação da Timbalada, liderada por Carlinhos Brown.
O sucesso veio acompanhado por tensões, disputas mercadológicas, brigas entre artistas e empresários, além de embates de ideias sobre a formatação do Carnaval que transpassam as últimas quatro décadas.
O auge do axé embalou uma epidemia de Carnavais fora de época e discos que se sucediam nas listas de mais vendidos. Foi um movimento que fez ascender o modelo de blocos de trio cercados por cordas.
O formato foi marcado por práticas discriminatórias. Em 1999, o Ministério Público do Estado da Bahia investigou blocos como Eva, Pinel e Beijo e denunciou o bloco A Barca por rejeitar foliões negros e de bairros periféricos entre os seus associados.
Em 2012, Luiz Caldas lançou a música “Apartheid da Alegria”, que fala na “chuva de grana” que passou a dominar a festa. Na mesma época, o presidente do Olodum, João Jorge, disse que a Bahia havia se tornado a terra de uma artista só, Ivete Sangalo.
O formato de blocos fechados começou a dar sinais de cansaço na última década, em paralelo ao crescimento dos megacamarotes. Trios independentes e gratuitos voltaram a ganhar força.
Ao mesmo tempo, o axé passou a dividir o protagonismo no Carnaval com outros gêneros, como pagodão baiano, ritmo criado nas periferias a partir da matriz do samba duro, o arrocha, além de novidades como o BaianaSystem.
No Carnaval em que celebra os seus 40 anos, a axé music renova a sua vocação de guarda-chuva de gêneros musicais, que se unem no fenômeno dos trios elétricos. O chamado axé raiz persiste em nomes como Saulo Fernandes, mas o pagodão ganhou terreno com artistas como Leo Santana.
Os veteranos seguem na ativa ancorados em clássicos que sustentam desfiles que chegam a seis horas. Os mais jovens têm novas referências, mas mantêm a reverência àqueles que lhes antecederam.
Os blocos afro ganharam mais visibilidade e renovam o cancioneiro construído nas últimas décadas. “Esse repertório é um legado que a Bahia deixa para a música popular brasileira. São músicas que daqui a 50 anos a gente vai continuar ouvindo”, afirma a antropóloga Goli Guerreiro.
Luiz Caldas evita falar em futuro do axé, mas destaca sua capacidade de se reinventar, abraçando novos ritmos e experimentando novas formas de se fazer música para o Carnaval.
“Eu vejo muita gente se mexendo para outros caminhos, mas preso ao Carnaval. É um cordão umbilical que não queremos que ninguém corte. Ele estica, vai para onde você quiser e você está ligado à sua raiz”, afirma o pioneiro.
O axé morreu. Vida longa ao axé.