Como quem toca um par de castanholas, um homem sai da calçada e avança alguns passos no asfalto na direção de quem ali transita de carro. O movimento vem acompanhado da pergunta certeira: “Quer vender?”. À primeira vista, o comportamento pode parecer estranho e até invasivo, numa alameda do centro da maior cidade do país, mas a cena se repete inúmeras vezes ao dia, quando uma legião desses comerciantes de automóveis aborda os motoristas com ofertas de negócio rápido. É a “boca”.
Hoje a atividade perdeu fôlego, mas ainda persiste na alameda Barão de Limeira, outrora um feirão a céu aberto, onde vendedores usavam todo tipo de estratégia para chamar a atenção de potenciais clientes em busca de um “rolo”.
Assim, a via no bairro de Campos Elíseos, na zona central de São Paulo, ganhou fama de ser a “boca dos automóveis”. Durante quatro décadas, o ponto atraiu até gente de outras regiões do Brasil.
Ainda nos anos 1950, a alameda abrigaria as primeiras lojas de veículos importados da metrópole. “Chegou a ter umas 40 lojas de seminovos”, calcula Carlos Roberto Dauria, de 75 anos, lembrando os áureos tempos do comércio de luxo –ele está no ramo desde 1968, sempre na Barão. “Vinha gente de todo o país.”
Naquela época, um comboio de “cegonheiros”, os caminhões de transporte de veículos, alinhava-se nos arredores da praça Princesa Isabel (hoje um parque gradeado), a duas quadras da Barão. Eles partiam dali, principalmente, para Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
No auge dos anos 1980, época da hiperinflação, o negócio de compra e venda de carros era muito lucrativo. Foi o período de pico das vendas, quando faziam grande sucesso a Brasília, a Kombi e o Fiat 147, os modelos que mais atraíam atacadistas Brasil afora.
Os tempos mudaram. O país se abriu à importação de veículos na década de 1990 e, depois, vieram os carros populares, que movimentaram o mercado do automóvel zero-quilômetro.
Menos sujeito às oscilações seria o mercado de colecionadores, um nicho onde circulam aficionados de modelos antigos dispostos a investir um bom dinheiro em sua paixão. Pensando nisso, em 2021, Dauria deu uma guinada na carreira: passou a trabalhar exclusivamente com os carrões antigos.
Atualmente, Dauria destaca entre os itens de coleção mais cobiçados por seus clientes um Cadillac, ano 1979, que sai por R$ 220 mil, e um Maverick GT, fabricado em 1968, que, por R$ 289 mil, pode fazer seu piloto se sentir em uma filmagem de “Velozes e Furiosos”.
Os dois veículos fazem parte de uma frota de ao menos 20 possantes da loja Eduardo Veículos Antigos, na qual Dauria exerce o seu ofício. “É claro que o comércio de automóveis deixava a alameda mais movimentada, com bastante gente, inclusive aos sábados”, conta. “Tinha comprador que usava roupa de gala para sair da loja com o seu automóvel de fazer inveja”, recorda-se.
Mesmo durante o declínio, o vendedor foi procurando adaptar-se à nova realidade. Sempre encarou a Barão como um porto seguro. “A gente ainda mantém um vínculo com uma clientela mais elitizada, sobretudo aquela formada por colecionadores.”
Vizinho de Dauria há outro estabelecimento de venda, mas com características completamente diferentes. Existe ainda uma oficina na linha “martelinho de ouro”, abarrotada de carrões e SUVs luxuosíssimos que ali estão para sofrer pequenos reparos e voltar às ruas tinindo, sem um arranhão sequer. Uma ou outra oficina aqui e acolá.
Aqueles vendedores que caçavam os clientes diretamente na rua, resquício do rico período automobilístico da Barão, começaram a desaparecer por volta do ano 2000, quando o negócio foi por água abaixo.
Andando por ali, percebem-se muitas portas cerradas. No lugar de ofertas de veículos de outrora, surgiram farmácias, estacionamentos, lojas, restaurantes, supermercados e bancos (hoje apenas um). Perto da praça Julio Mesquita, um shopping é dedicado aos acessórios de motos. No número 425, um prédio de 11 andares abriga a Folha.
A diversidade comercial da Barão contemporânea está concentrada, acima de tudo, entre as alamedas Glete e Eduardo Prado. Há 25 anos, o paraibano Edson Pereira Leite, 56, faz segurança nessas quadras, pago pelos comerciantes locais. O último bloco, da Eduardo Prado até a rua Lopes de Oliveira, é quase todo residencial, exceto pelo colégio Boni Consilii, que funciona em um exuberante palacete do final do século 19, cercado por um jardim com mais de cem espécies. Um oásis no deserto de concreto urbano.
De segunda a sábado, ele percorre 50 km de Itaquaquecetuba até a Barão. “A segurança melhorou muito nos últimos meses, mas ainda há arrombamentos noturnos”, conta. “Durante o dia, como ocorre em outras regiões da cidade, gangues de bike atuam por toda a parte”, diz o segurança, ele próprio vítima do bando.
“A alameda parece ter uma característica em cada quarteirão”, opina. O último, por exemplo, poderia, nas palavras dele, estar em Perdizes, no Pacaembu ou até mesmo nos Jardins.
“Quanto menos lojas, bares, restaurantes, mais cinzenta a área fica”, afirma. Difícil discordar dele. Basta assistir ao vaivém de pessoas entre os estabelecimentos da via para perceber essa diversidade comercial.
Nesses 57 anos dedicados à “boca”, Dauria calcula ter comercializado uns 5.000 veículos. O veterano vendedor de carros antigos, que não pensa em parar tão cedo, tem planos para o futuro: “Ainda quero tentar vender ao menos um carro voador”.