Monica dos Santos, ex-moradora de Bento Rodrigues, Minas Gerais, divide a própria vida entre antes e depois da tragédia de Mariana.
“A Monica até 5 de novembro de 2015 era uma. Hoje, é a Monica na qual as empresas transformaram,” disse à Folha. “Perdi tudo. Casa, roupas, projetos de vida, sonhos.”
Após o rompimento da barragem do Fundão, Monica se formou em direito para entender o caso e representar afetados em negociações com as empresas envolvidas. A advogada veio a Londres acompanhar a reta final de uma ação civil em curso na Justiça da Inglaterra. O julgamento terminou nesta quinta-feira (13).
O desastre de Mariana ocorreu com o rompimento de uma barragem de rejeitos da mineração de minério de ferro operada pela empresa Samarco, pertencente às multinacionais BHP, de origem anglo-australiana, e da brasileira Vale. Provocou a morte de 19 pessoas e espalhou lama tóxica por quase 700 km, de Minas Gerais até o oceano Atlântico.
A ação inglesa busca responsabilizar a BHP, usando como base o direito ambiental brasileiro. A corte ouviu testemunhas e especialistas em direito civil, cocietário e ambiental e questões geotécnicas. O caso tramita na Inglaterra porque a BHP era listada no país quando o rompimento ocorreu.
O processo reúne cerca de 641 mil vítimas –sendo 21 mil membros de comunidades tradicionais quilombolas e indígenas– e 31 municípios. Os pedidos de indenização se aproximam dos 36 bilhões de libras (R$ 270 bilhões em valores de hoje).
Outros 15 municípios deixaram a ação inglesa por terem aceitado o acordo brasileiro de repactuação assinado em outubro no valor de R$ 170 bilhões, envolvendo empresas, União, estados de Minas Gerais e Espírito Santo e comunidades atingidas.
Do valor pago por Samarco, Vale e BHP Billiton, foram oferecidos aos municípios R$ 6,1 bilhões ao longo de 20 anos, nove vezes menos do que na ação inglesa. Vinte e seis dos 49 municípios elegíveis aderiram, e mais de 70 mil pessoas se cadastraram em um programa indenizatório definitivo que prevê R$ 35 mil para cada.
O prefeito de Mariana, Juliano Duarte, rejeitou o acordo brasileiro.
“Não fomos ouvidos. Não tem que se falar em assinar um acordo em que não tivemos participação direta, com valores totalmente insuficientes para a realidade dos nossos municípios,” disse à Folha.
“Somente 4% ficaram para 49 municípios diretamente atingidos. Após o rompimento, Mariana teve grande queda de receita. A mineração parou e levou o poder público a cancelar investimentos, programas, projetos, obras. Queremos valores que mudem a realidade de Mariana para que a cidade não seja 100% dependente da mineração como é hoje.”
A sentença é aguardada no meio do ano. Se a BHP for culpada, o próximo passo, em outubro de 2026, é determinar quem tem direito à indenização e aos valores.
“Acho que o julgamento não poderia ter sido melhor para as vítimas que representamos,” disse à Folha Tom Goodhead, CEO do escritório que representa os atingidos.
“A BHP começou o julgamento dizendo que não tinha nada a ver com a operação da Samarco. Todas as evidências mostraram o nível extraordinário de envolvimento que BHP e Vale tinham nas operações, tomada de decisões, maximização do lucro, avisos sobre segurança.”
“Dinheiro é importante para as pessoas, mas eles [empresas] o usam como arma. A realidade de quem vive em regiões rurais de Minas Gerais e Espírito Santo é tal que, para pescadores, vendedores informais, ser oferecido a eles uma pequena quantia hoje com a condição de que abram mão de seus direitos, é algo que são forçados a aceitar. Sei de prefeitos que assinaram o acordo de repactuação não porque achassem bom negócio, sabiam que era terrível, mas tinham que pagar salários. Essas empresas se aproveitaram do desespero das vítimas e seguem fazendo isso. Acho moralmente repreensível,” disse Goodhead.
Fernanda Lavarello, diretora de assuntos corporativos da BHP Brasil, diz que o foco da empresa é o acordo brasileiro.
“O que importa para a gente é o que está sendo feito no Brasil. Foi uma tragédia o que aconteceu, impactou a vida de muitas pessoas, a gente está bastante comprometido com a reparação no Brasil. Nos últimos nove anos, indenizamos 432 mil pessoas, reconstruímos casas, estamos trabalhando na reparação ambiental, escolas, infraestrutura,” disse Lavarello à Folha.
“A barragem era operada pela Samarco, uma joint venture independente e autônoma. Apresentamos evidências de que não fomos informados de nenhum risco nem participamos de nada que tenha causado diretamente o rompimento,” completou.
Na esfera criminal, a Justiça Federal absolveu em novembro passado Samarco, BHP Billiton e Vale, diretores, gerentes e técnicos, por “ausência de provas suficientes para estabelecer a responsabilidade criminal” dos réus. Monica entrou com um pedido de apelação contra a decisão.
“O que eu consigo perceber nesses quase dez anos é que, para essas empresas, matar compensa,” disse.
“Por que? No Brasil, elas ditam as regras, falam quem são os atingidos, valor que vai ser pago, quando e se vai ser pago. Tendo a responsabilização aqui (em Londres), talvez a gente consiga mudar a decisão que inocentou os réus. A justiça, de fato, vai ser feita quando eu conseguir ver alguém atrás das grades. Só assim, a gente vai mudar as coisas.”