Em uma consulta, um garoto de 9 anos surtou quando os pais disseram ao pediatra que ele estava viciado em telas e cogitaram limitar o uso de tecnologia. Jogou a cadeira no chão e derrubou tudo o que viu pela frente no consultório.
Esse é um dos casos de dependência em tecnologia presenciado pelo pediatra Paulo Telles, de São Paulo, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Academia Americana de Pediatria, que, nos últimos anos, tornou-se um ativista contra o uso excessivo de tecnologia na infância e na adolescência.
Telles integra o Movimento Desconecta, que militou pela lei do banimento dos celulares nas escolas e defende um acordo entre os pais para que posterguem a entrega do primeiro smartphone aos filhos e o acesso deles às redes sociais.
Nesta entrevista à Folha, o pediatra fala sobre os danos dos celulares, defende que os aparelhos não devem ser armazenados nas mochilas e aponta quais são os sinais de que uma criança ou um adolescente estão viciados em tecnologia.
O que acontece no cérebro de uma criança quando ela mexe no celular?
Os efeitos são muito piores para as crianças do que para adultos, porque o cérebro delas está em formação. Um cérebro em formação prioriza o desenvolvimento da área mais utilizada. Quando a criança usa muito a tela, o cérebro entende que aquele estímulo é o mais importante e destrói a arquitetura de outras conexões, como interação social, leitura, desenvolvimento cognitivo, linguagem. Essa destruição da arquitetura cerebral não se recupera.
Há pais que acreditam que, para o mercado de trabalho, no futuro, é preciso que as crianças e os jovens tenham muito acesso à tecnologia. Aqueles que são mais protegidos da tecnologia quando novos, no entanto, logo que precisam utilizá-la fazem isso sem dificuldades, muitas vezes até melhor do que os que foram muito exposto às telas na infância, porque têm uma capacidade cognitiva global maior.
Quais são os prejuízos do uso do celular no ambiente escolar?
Cada vez que um aluno olha o celular, ele demora, em média, 14 minutos para voltar para a sua atenção plena. Quase metade da aula já se foi com uma olhada no celular. Além disso, a escola é um espaço para socialização, e o celular faz com que os alunos tenham pouca conexão, pouca troca. Há aumento do cyberbullying, que pode acontecer 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Em que medida o vício em celulares se compara ao vício em drogas?
O algoritmo consegue sempre nos mostrar coisas que nos atraem. Sabemos que as big tecs usam a neurociência, conhecimentos de medicina para fazer com que o cérebro do usuário receba cada vez mais dopamina [neurotransmissor que dá sensação de bem-estar, também estimulado pelas drogas] e fique nesse ciclo de querer usar aquele aparelho cada vez mais. Ficamos viciados nesse fluxo da dopamina que vem com uma curtida, com uma nova notificação. Isso é muito ruim, especialmente para crianças e jovens.
Já alguns estados americanos com mais atendimento para crianças e jovens viciados em telas do que em substâncias ilegais. Estamos vivenciando aumento das taxas de depressão, de ansiedade, incidência de automutilação etc.
Com as meninas, principalmente, há sofrimento em relação ao corpo, diante da exposição a imagens irreais, cheias de filtros, o que gera problemas como bulimia. Outro grave problema é o aumento do vício em jogos e apostas online. Em média, 7% dos meninos já sofrem com isso. O cérebro de crianças tem muito mais dificuldades de controlar esse acesso do que o dos adultos.
Que sinais demonstram que a criança ou o jovem estão viciados em telas?
Quando só falam de tela e do que há na internet, do youtuber, dos jogos, das atualizações etc., mesmo quando estão offline. Não conseguem fazer outras atividades, sair para brincar, passear. Levam o celular para todo lugar, para o carro, para a mesa nas refeições, dormem com o aparelho ao lado, não conseguem se desconectar porque não querem parar de ver mensagens.
Outros sinais: se, quando enfrentam dificuldade, precisam da tela para se acalmar, se mentem em relação ao uso, a utilizam escondido quando há um limite imposto pelos pais. Se, quando alguém tira deles o equipamento, ficam nervosos, têm um comportamento explosivo, atitudes não habituais. Os pais têm que ficar alertas se os filhos estão se isolando, não querem sair de casa, começam a ter mudanças de humor, estão mais calados, depressivos e não falam o que sentem.
Que idade mínima deveria ser estipulada para a adesão às redes sociais?
Quando entramos nas redes sociais, assinamos um contrato no qual damos à empresa acesso às nossas informações. Quando uma pessoa está pronta para isso? Provavelmente quando está pronta, por exemplo, para dirigir. Ter letramento digital é ter noção do que se faz online, das consequências que aquilo pode ter.
Certa vez, umas crianças da minha família brincaram de manipular a minha voz para produzir um áudio dizendo que celular é ótimo para crianças. Eu conversei com elas, perguntei se tinham noção do que haviam feito, expliquei que aquilo era um crime e falei sobre o que poderia acontecer se aquilo fosse disseminado.
Crianças e jovens precisam saber, por exemplo, que não se pode tirar uma foto de um amigo e divulgar na rede. Esse letramento tem que ser explorado nas escolas.
Por tudo isso, acredito que as redes sociais deveriam começar a ser usadas entre os 16, 18 anos. Antes disso, as crianças e os jovens não estão prontos para esse processo de criar uma imagem de si e vendê-la, permitindo que qualquer pessoa tenha acesso a ela. Temos que nos preocupar com o acesso que predadores, como pedófilos e outros criminosos, têm de crianças e jovens nas redes sociais.
Sempre digo para os pais: quer dar um celular para seu filho? Então você tem que estar disposto a conversar com ele sobre violência, pornografia, pedofilia, crimes cibernéticos, uso de armas, uso de drogas, vícios, autoimagem, depressão, ansiedade. Se você não está pronto para isso, se acha que seu filho não está pronto para ouvir sobre tudo isso, então ele não está pronto para ter rede social.
Os pais levam ao seu consultório problemas relacionados à internet?
Os pais levam muitos problemas, como o excesso de tempo que as crianças ficam nas telas, o fato de não quererem fazer mais nada além disso, e de terem explosões de raiva em razão da tecnologia. Já tive um caso de um paciente de 9 anos que estava viciado em Fortnite. Conversamos sobre isso no consultório, e só de o pai cogitar tirar o jogo dele, o menino teve um surto, jogou a cadeira no chão, derrubou todas as coisas, eu não consegui finalizar a consulta.
As crianças não têm discernimento sobre os riscos. Costumam perceber o problema quando estão passando por algo grave, como cyberbyllying, agressão, vazamento de foto. Muitas vezes, não levam o problema para os pais. Sofrem em silêncio, e acham grupos nas redes sociais que dão conselhos horrorosos. Ouvem pessoas dizendo que passam pelo mesmo problema e que se cortam, tomam remédios. A criança se sente amparada por esse grupo, se isola no quarto, só fala com essas pessoas, e os pais nem sabem o que está acontecendo.
Quais são os principais danos dos smartphones para a saúde física?
A taxa de atendimento em pronto-socorro ortopédico infantil caiu nos últimos anos, porque as crianças estão brincando cada vez menos, não estão correndo, subindo em árvores. Ficam cada vez mais tempo em telas, e, assim, há menos lesão. Parece algo bom, mas é péssimo, porque as crianças precisam dessa exposição, do contato com a natureza, precisam cair e se levantar para que haja um desenvolvimento neurológico adequado. Com as telas, houve aumento de problemas de visão, miopia, vista cansada. Em razão da postura, surgiram problemas ortopédicos na região cervical. A obesidade aumentou, assim como outros ligados ao sedentarismo. Também cresceram os problemas auditivos porque os adolescentes usam fones de ouvido com o volume muito alto.
No banimento do celular nas escolas, há pessoas que defendem que o aparelho fique nas mochilas e que os alunos se controlem para utilizá-lo.
A gente já tentou fazer isso nos últimos anos, e o resultado foi péssimo. Há uma série de estudos que demonstram que não há como o aluno ter essa autonomia porque é uma luta contra os algoritmos, e já perdemos essa luta. É um sistema feito para que a gente não consiga sair dele. O adulto não consegue, como o estudante vai conseguir? Os mais novos não têm maturidade neurológica, não há como terem essa autonomia em relação ao celular.
É importante trazer as crianças e os adolescentes para o debate. Adolescentes não gostam de ser controlados. Mostrar que estão sendo controlados pela tela é o primeiro passo. Devemos perguntar se conseguem controlar o tempo de tela, se percebem os produtos que estão tentando lhes vender, se sabem que, quanto mais tempo ficam no celular, mais as empresas lucram e que, por isso, os algoritmos não deixam que saiam. Devem notar que dormem mal, não conseguem interagir, que perdem o foco toda hora e têm dificuldades de se socializar.
Essa resistência inicial contra o banimento vai passar logo, porque eles vão perceber a melhora em todos os sentidos, no aprendizado e nas relações.