Seja por crise financeira, declínio de público, especulação imobiliária, incêndios ou falta de segurança, pode ser bastante desafiador manter um negócio na cidade de São Paulo, ainda que ele seja histórico e querido pelo público.
Cairê Aoas, sócio do grupo Fábrica de Bares, trabalha com a renovação e a modernização de espaços tradicionais que estão à beira de fechar. E, na São Paulo de 471 anos, eles são vários.
“Estamos mexendo com a memória, a emoção, a história e a vida de muitas pessoas”, diz. “Tudo começou com o resgate do Bar Brahma. Quando ele fechou, em 1998, foi tão impactante que comoveu a sociedade. Esses locais não são apenas pontos comerciais, mas emocionais.”
O grupo, segundo ele, acabou criando uma “vocação especial para esse tipo de projeto”. São do Fábrica de Bares, além do Bar Brahma, o Riviera, o Bar Léo e, mais recentemente, o Café Girondino. Quando o fechamento do café ficou inevitável, os donos procuraram Aoas.
“O Girondino era quase um oásis naquela região altamente comercial e faz parte da identidade de São Paulo.”
Mas nem sempre é fácil modernizar um negócio tradicional sem descaracterizá-lo e sem desagradar público e clientes antigos. Críticas existem e, de olho nelas, os novos administradores garantem tomar cuidado.
“É preciso estudar muito o lugar, pesquisar e ouvir as pessoas envolvidas”, afirma Aoas. “A gente se preocupa em preservar, mas é preciso atualizar, olhar para a qualidade e a renovação. Com muito respeito e cuidado. Essa é a responsabilidade de reabrir um lugar que fechou. Conseguir trazê-lo para o momento atual, sem perder suas características, mas gerando resultados.”
Esse instinto de modernização foi o que guiou o grupo Playarte quando comprou o cine Marabá, joia histórica de 1944 instalada na avenida Ipiranga, pertinho do Bar Brahma. “Era uma única grande sala com 1.600 lugares”, lembra Otelo Bettin Coltro, vice-presidente executivo da Playarte.
Segundo ele, o conceito do multiplex –complexo com várias salas de cinema– estava ainda chegando ao Brasil naquela época, e ficou decidido que era isso que o Marabá seria. O grande desafio? “O prédio é tombado, a fachada, a recepção, a entrada”, lembra ele. Os arquitetos Ruy Ohtake e Samuel Kruchin foram contratados para a reforma e restauração do local, que levou quase dois anos. O cinema foi reaberto em 2009.
“O trabalho não foi só na fachada, mas especialmente na parte interna. Aquele piso era de madeira e, quando compramos, estava com granito. Tivemos que demolir tudo e mandar fazer as madeirinhas para ficar como o original. Precisamos tirar 12 camadas de tinta das colunas até chegar à cor do cinema. Os lustres de cristal foram restaurados. Tudo tinha que estar igualzinho a 1944. A modernidade ficou apenas dentro das salas”, lembra ele. “Foi um grande investimento, mas recompensado. Mantém a história e a tradição da cidade.”
Segundo Coltro, apesar do público fiel que frequenta o Marabá, a grande dificuldade financeira enfrentada pelo cinema tem a ver com o IPTU “bastante elevado”. “Cinemas de rua, por lei, são isentos da cobrança. Mas entramos com um processo solicitando isso em 2023 e até agora não foi apreciado.”
A questão imobiliária também tem sido, há alguns anos, desafiadora para o Reag Belas Artes, que, entre altos e baixos, conta com patrocínios para bancar o aluguel na rua da Consolação, esquina com a avenida Paulista.
“O cinema de rua enfrenta uma competição injusta. Ele tem que pagar aluguel compatível com o espaço. Mas, por outro lado, precisa obedecer regras como número de banheiros, área de circulação. A parte dos assentos acaba sendo só 40% daquele espaço. Abrimos à noite, estimulamos negócios no entorno, aumentamos a segurança. A prefeitura poderia criar algum tipo de estímulo a esses espaços que estão cumprindo papel social importante”, diz André Sturm, presidente do Belas Artes Grupo.
A seu favor, o Belas Artes tem paulistanos apaixonados –muitos deles ilustres– que se unem e se agitam cada vez que o cinema passa por uma dificuldade financeira. “Não é só um cinema. É um ícone em que as pessoas sabem que vão encontrar filmes diferentes, debate, reflexão e diversão também. É um espaço de resistência”, afirma Sturm.
Descendo a Consolação, voltando para o centro, um outro espaço de resistência ocupa a rua Nestor Pestana. É o Teatro Cultura Artística, que ficou 16 anos em reforma após um incêndio que o destruiu. O tempo se deu, em parte, porque o espaço –também tombado– dependia de doações para poder ser refeito.
“Foram mais de 800 doações, foi bonito ver”, diz o diretor-executivo Frederico Lohmann. “Bastava entrar no site e colaborar. Tinha gente doando desde R$ 50 até empresas com quantias maiores [o projeto custou R$ 150 milhões, a maior parte arrecadada via lei de renúncia fiscal]. Isso mostra a grande mobilização da sociedade civil, que sempre teve muito carinho pelo teatro.”
O novo Cultura Artística tem seu foco voltado à música, e a reabertura tem agitado o entorno. Além da própria programação, o teatro conta com eventos promovidos pela livraria que se instalou ali e a movimentação de seus cursos para jovens músicos.
“O nosso propósito é manter o prédio vivo. Temos visto surgir uma série de instituições culturais na região, serviços, gastronomia, galerias de arte. Queremos cada vez ter um papel mais ativo.”
Outro que também tem mexido com seu entorno é o edifício Martinelli –que já esteve abandonado e hoje abriga órgãos municipais, principalmente. O Grupo Tokyo ganhou a concessão da varanda e do térreo do prédio centenário, localizado no centro histórico, e está com um grande projeto de reforma e revitalização. No ano passado, organizou visitas guiadas ao local e festas, tudo com ingressos esgotados.
“É importante permitir que esses espaços históricos revivam. Como? Levando gente até eles!”, diz Fábio Floriano, sócio do grupo. “Vamos levar as pessoas a circularem no centro dia e noite. Transformá-lo em um espaço vivo, com grande oferta cultural. Acessível a todos e ainda com esse ingrediente histórico.”
A história também é um atrativo do novo DJ Club, ou Complexo DJ Club, como foi rebatizada a casa noturna. Nascida nos Jardins, foi vítima da especulação imobiliária e teve que fechar as portas. Os donos decidiram, então, reabrir em um antigo casarão nos Campos Elíseos, onde antes funcionava uma escola.
“Estava abandonada, e nós a restauramos, mantendo a originalidade e o mobiliário da época”, conta Igor Calmona, um dos proprietários. “A gente encarou o desafio contando com o poder público e com projetos de melhoria do centro. Acreditamos no potencial que a região tem, que é sensacional. As pessoas precisam vir conhecer e acabar com o preconceito.”
Os desafios de investir em espaços históricos ainda são grandes. Mas a avaliação de quem decide acreditar no centro é de que vale a pena.
“Não é negócio apenas, trata-se de paixão, de propósito, de algo que a gente gosta de fazer e em que acredita. Algumas apostas deram certo, outras, não. Para cada bar aberto, a gente fechou cinco. Mas tudo é aprendizado. Esses locais hoje fazem parte da cidade e têm clientes apaixonados. Isso mostra que está dando certo”, encerra Aoas.
Cine Marabá
Avenida Ipiranga, 757, centro
- Inauguração Maio de 1944, com a exibição do filme “Desde que Partisse”, drama de John Cromwell, com Shirley Temple e Claudette Colbert no elenco
- Fechou em… 2007, para ser reformado, restaurado e transformado em multiplex
- Reabertura 2009
Belas Artes
Rua da Consolação, 2423, Consolação
- Inauguração 1956, com o nome de Cine Trianon e a exibição do filme “Eles se Casam com as Morenas”, estrelado por Jane Russell. No ano de 1967, passou por uma reforma e foi batizado de Cine Belas Artes, como é conhecido até os dias de hoje
- Fechou em… 1982, após um grande incêndio. Foi reaberto no ano seguinte. Enfrentou um período de decadência nos anos 1990 e início dos anos 2000. Em 2011 fechou novamente
- Reinauguração 2014, após uma grande mobilização pública, com apoio da prefeitura e um novo patrocinador
DJ Club
Alameda Glete, 562, Campos Elíseos
- Inauguração Fevereiro de 2000, na alameda Franca, nos Jardins, onde funcionou por 21 anos
- Fechou em… 2021, por causa da especulação imobiliária. O imóvel onde funcionava acabou vendido
- Reinauguração 2024, na região central, em um casarão de 1890, onde funcionava o colégio Maria José. Hoje, o espaço foi rebatizado como Complexo DJ Club
Café Girondino
Rua Boa Vista, 365, centro
- Inauguração 1998, na rua São Bento. Antes, entre 1875 e 1920, funcionou na esquina da rua 15 de Novembro com a praça da Sé. Na época do Brasil Império, o local era visitado pelos barões do café
- Fechou em… Junho do ano passado, especialmente prejudicado pela crise pós-pandemia
- Reinauguração Novembro do ano passado, sob nova administração, mas mantendo o clima e as delícias tradicionais que fizeram sua fama
Bar Brahma
Avenida São João, 677, centro
- Inauguração 1948, pelo imigrante alemão Henrique Hillebrecht. Logo se tornou um ponto de encontro de personalidades importantes dos meios acadêmico, político e artístico
- Fechou no... Início dos anos 1990, depois da deterioração da região central a partir dos anos 1970
- Reinauguração 1997, com o nome São João 677, mas encerrou as atividades já no ano seguinte. Em 2001, foi reinaugurado com o nome original, na esquina das avenidas Ipiranga e São João
Bar Léo
Rua Aurora, 100, Santa Ifigênia
- Inauguração 1940. Desde então ficou conhecido pelo chope
- Fechou em… 2012, endividado e sob acusações de vender chope falsificado
- Reinauguração No mesmo ano, meses depois, com nova administração e modernizado
Riviera
Avenida Paulista, 2.584, Consolação
- Inauguração 1949, na esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação. Funcionava como um salão de chá frequentado pela elite paulistana. Marcou época na boemia paulistana, principalmente entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1990
- Fechou em… 2006, após perder a clientela e enfrentar situações de violência
- Reinauguração 2013. Depois da pandemia, reformado, passou a funcionar 24 horas
Edifício Martinelli
Rua São Bento, 405, centro
- Inauguração 1929. Depois, em 1933, foi vendido para o governo da Itália. Em 1943, com a guerra, todos os bens italianos foram confiscados, e o Martinelli passou a ser propriedade da União. Com o fim da Segunda Guerra e o boom imobiliário, ficou abandonado e só foi recuperado e reformado nos anos 1970, quando a prefeitura desapropriou o prédio
- Reinauguração Em 1979, com diversas repartições municipais. Em 2024, como celebração do centenário do início da construção do edifício, passou a abrigar festas em seu terraço no último andar e visitas guiadas. Agora, está passando por reforma para abrigar restaurante, café e museu, entre outros espaços. A previsão é que fique pronto no fim deste ano
Teatro Cultura Artística
Rua Nestor Pestana, 196, Consolação
- Inauguração 1950, com um concerto de Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarnieri
- Fechou em… Agosto de 2008, quando um incêndio de grandes proporções atingiu o espaço, destruindo as duas salas de espetáculo
- Reinauguração 2024, após reforma que levou 16 anos