Falta d’água é pior para mulheres no Vale do Jequitinhonha – 16/03/2025 – Ambiente

No Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, os recordes de calor e seca têm agravado a escassez hídrica, problema já conhecido da região de 55 municípios e que sobrecarrega as mulheres das comunidades locais. Elas acumulam à dupla ou tripla jornada de trabalho a gestão dos poucos recursos disponíveis.

Historicamente, é delas a função de captar a água, armazenar e também gerir o uso para a alimentação e higiene da família.

“Se as crianças adoecem por terem tomado uma água que não estava tratada, quem cuida dessas crianças são as mulheres”, exemplifica Thaís Zimovski, professora do IFMG (Instituto Federal de Minas Gerais), que pesquisa a relação entre escassez hídrica e desigualdade de gênero.

Além disso, diz a pesquisadora, elas acabam deixando de lado O tempo que poderia ser dedicado ao estudo, às atividades profissionais e ao cuidado com a própria saúde.

Em comunidades rurais, o trabalho é ainda maior. As distâncias percorridas para carregar a água aumentam, os caminhos são mais perigosos e, por vezes, mais desertos, e há a necessidade de usar a água nas plantações e criações de animais. Isso acontece em grande parte do Vale do Jequitinhonha, a região com os menores índices de desenvolvimento do estado, na qual dois terços da população vivem em áreas rurais.

Karina de Paula Carvalho, 30, conta ter crescido lavando roupa no rio Capivari, em Chapada do Norte (MG), junto de sua mãe, Helena, 61, lavadeira.

Sua rotina se dividia entre o centro da cidade e o roçado da família em Pinheiros, região rural que busca titulação para se tornar território quilombola, onde está a plantação e a criação de animais da família.

Ela percebe o agravamento das secas ao longo dos anos. Na adolescência, o rio em que ela e sua mãe lavavam roupas já estava tão degradado que tornou a atividade inviável. “Cresci com essa dificuldade muito grande de ter água, tanto que até hoje a gente não tem água corrente na torneira o tempo todo.”

Sua família, assim como outras da região, criou estratégias para evitar ficar totalmente sem água. Na casa na cidade, duas caixas d’água substituíram o antigo recipiente de barro que armazenava água e, na plantação, seu pai, Vicente, 66, instalou um poço para coletar água da chuva.

Doutoranda em ciências sociais, seus estudos na graduação se voltaram para sua experiência de vida no Jequitinhonha. Hoje ela pesquisa segurança alimentar e suas relações com gênero, raça e classe e ressalta a importância das ações que mostram os desafios da região sem ignorar a riqueza cultural local do vale.

“Todo mundo que é do Jequitinhonha já nasce com esse estigma de ser um vale da pobreza, mas apesar disso, somos um vale muito rico culturalmente”, enfatiza.

A presença de quilombos e comunidades indígenas e ribeirinhas no Vale do Jequitinhonha faz da região um importante ponto de preservação da cultura negra, guardando práticas que vão do artesanato às técnicas de cultivo que foram passadas de geração em geração.

Algumas dessas comunidades foram formadas ainda no século 18, durante o ciclo do ouro. Ainda hoje o local continua a ser uma região de disputa da mineração de lítio, que cresce nos arredores do rio Jequitinhonha, e da monocultura de eucalipto.

“Essas comunidades negras rurais sempre resistiram, estão há séculos criando soluções. São muito resilientes e sustentáveis, mesmo sem acesso à infraestrutura necessária”, afirma Taynara Gomes, coordenadora de pesquisa e dados do CBJC (Centro Brasileiro de Justiça Climática).

Em fevereiro, o CBJC lançou uma cartilha que evidencia o problema histórico da falta d’água no Jequitinhonha. Segundo o documento, com a projeção da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) de que as reservas de água do Brasil caiam até 40% em 2040, o acesso, que já é limitado, se tornará ainda mais restrito no vale, que concentra pelo menos 584 comunidades quilombolas.

A cartilha destaca questões como insegurança alimentar, desnutrição e risco de exposição a doenças como a dengue, agravados pela falta d’água. Ao mesmo tempo, o documento quer jogar luz para a relação dessas comunidades com a água, que vai além dos problemas estruturais.

“Ali, a água não é apenas um recurso, um meio ou uma mercadoria. Ela tem um valor cultural, relacionado às memórias afetivas e também um valor religioso”, diz Taynara.

As pesquisas para elaboração do documento começaram em meados de 2024. A coordenadora conta que o papel das lideranças femininas chamou atenção desde o início dos estudos.

“Os principais pontos de referência que encontramos eram sempre mulheres. Elas são apontadas como liderança, como a pessoa que guarda o conhecimento, a história do território, das práticas e das vivências.”

Elas estão nas duas pontas do problema: são as mais vulnerabilizadas pela escassez hídrica e também são as líderes dos movimentos locais para melhorar o acesso das comunidades aos direitos básicos. Apesar disso, ainda são minoria nos espaços de decisão e gestão pública.

“Embora essas mulheres estejam falando, lutando há algum tempo, percebo que essas pessoas não têm sido escutadas”, afirma Lauanda Lopes de Souza, 27, historiadora e membro do Observatório de Clima e Cultura do Jequitinhonha, organização que articula ações antirracistas em comunidades tradicionais .

Filha de agricultores de Araçuaí, no Médio Jequitinhonha, ela conta sempre ter tido uma relação muito próxima com o rio que banha e dá nome a cidade.

“Tenho essa lembrança ainda muito forte da minha avó contando todas as estratégias que ela e as outras mulheres da minha família faziam para garantir a água dentro da residência. Eram coisas que eu observava e ficava inquieta, preocupada.”

Lauanda conta que um de seus objetivos é promover troca de conhecimento entre moradores do Jequitinhonha e a academia, para que as pesquisas produzidas sobre o local possam chegar até a região e contribuir para lutas como a garantia das terras.

Tanto Lauanda quanto Thais, que pesquisa gênero e desigualdade, apontam o aumento da organização das mulheres em cobrar as autoridades, participando de audiências públicas e dos movimentos negros e quilombolas. Embora estejam mais presentes em debates políticos e também nas universidades, resultado da política de cotas, suas contribuições são frequentemente desprezadas, observam também.

“As mulheres negras e periféricas estão na linha de frente lidando com o problema e têm muito a contribuir mas, na prática, elas são deslegitimadas. Não basta que estejam lá, elas precisam ser ouvidas.”

O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.

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