Hirayama acorda antes do sol nascer. Nenhum alarme toca, nenhum celular vibra. Seu corpo apenas sabe a hora que precisa voltar a si depois do descanso. Abre seus olhos, levanta e dobra o colchão fino sobre o qual dorme todas as noites. O homem de meia-idade coloca seu uniforme, desce as escadas estreitas de seu apartamento, para em frente ao espelho do banheiro, escova os dentes, pega o molho de chaves e procura com os dedos pelas poucas moedas dentro de uma cumbuca.
Ao abrir a porta de casa, o personagem do filme “Dias Perfeitos”, criado por Wim Wenders e Takuma Takasaki, olha para o céu, talvez buscando alguma pista sobre o que o aguarda durante o dia —sol, chuva, calor, tempestades. Mas seu sorriso discreto, presente naquele movimento dia sim, dia também, me diz que o olhar não possui utilidade prática. É apenas contemplativo. Olhar para o céu e constatar que ele ainda está ali, todo dia, ora azul, ora cinza, ora derramando água ou raios de sol, o alegra e ele sorri.
O filme, indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2024, chegou com certo atraso ao meu aparelho de televisão. Não por falta de recomendações. Meus amigos mais antenados e sensíveis já haviam rasgado elogios à obra, mas eu confesso que no ano passado eu não andava com cabeça para filme cabeça, muito menos cabeça em japonês.
O erro foi finalmente corrigido na semana passada, numa sessão no sofá de casa, sem pipoca, nem testemunhas. A língua estrangeira falada nos poucos diálogos que permeiam a história me obrigou a dedicar atenção exclusiva àquela tela e a mais nenhuma outra, me oferecendo uma primeira lição antes mesmo da primeira cena. Pare, ouça, preste atenção, sinta.
O filme, em certos momentos, parece um disco quebrado, uma paródia poética do já clássico “O Feitiço do Tempo”, ou para os familiarizados com a história, “Dia da Marmota”, protagonizado pelo gênio Bill Murray. Lembra a música do Chico: Todo dia Hirayama faz tudo sempre igual. Acorda às 6 horas da manhã e sorri um sorriso pontual.
Há, claro, surpresas ao longo do roteiro —uma visita inesperada revela um passado surpreendente deste protagonista previsível—, mas o que cutuca mesmo a gente em “Dias Perfeitos” é como esses dias são parecidos, confortantemente simples e iguais.
Me peguei fascinada pela rotina ordinária daquele homem e ansiando por esse ritmo lento de viver, pela previsibilidade de seus passos, pela seriedade e compromisso com que ele desempenha suas funções, com que se entrega à cadência previsível de sua vida.
Ao ver subirem os créditos, tentei lembrar do que havia feito na manhã daquele dia que chegava ao fim no sofá da sala. E de como havia terminado o dia de ontem. Não lembrava. Cada um havia sido diferente do outro, permeado por imprevistos mil, envolto pelo caos da maternidade, do trabalho, do bombardeamento constante de informações, notícias, guiado pela sequência caótica de afazeres, metas, ambições.
Hirayama trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. Nos intervalos de suas obrigações, tira fotos analógicas das árvores, lê livros velhos e ouve fitas cassete no rádio do carro. Saboreia a comida enquanto observa o movimento ao seu redor. Sua vida não tem luxos materiais, mas é repleta do luxo que deixamos de ter: tempo e atenção. Enquanto o filme na tela caminha em câmera lenta, a vida real parece andar cada vez mais em fast forward.
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