A bordo do veleiro Australis, oito cientistas passaram seis semanas navegando ao redor da península Antártica, a parte do continente gelado mais acessível e próxima da América do Sul. Vestidos da cabeça aos pés em roupas de proteção que mais parecem saídas de um filme de ficção científica, eles desembarcaram em diversas praias e ilhas testando animais para o H5N1, o subtipo do vírus da gripe aviária que vem matando centenas de milhões de aves e mamíferos pelo mundo.
De 27 locais visitados, os cientistas encontraram cerca de 200 aves e mamíferos infectados em 24, indicando que o vírus se espalhou amplamente por toda a península. Entre as vítimas estão animais de 13 espécies, incluindo pinguins, gaivotas, albatrozes, mandriões e focas.
“Esse é definitivamente o maior surto já reportado na Antártida, afetando quase todas as espécies de animais”, diz Antonio Alcamí, biólogo molecular do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha e líder da expedição, que contou com a participação de quatro brasileiros.
Por muito tempo, a remota Antártida pareceu a salvo da epidemia de gripe aviária que vem assolando o planeta desde 2021. Mas tudo mudou quando, no final de 2023, o vírus, que já havia deixado um rastro de milhares de mortes em elefantes-marinhos e aves na América do Sul, chegou a ilhas subantárticas, como a Geórgia do Sul.
Em fevereiro de 2024, foram registrados os primeiros casos da doença no continente, em dois mandriões encontrados mortos perto da base de pesquisa argentina.
Até o final do último verão, quando grande parte das espécies se reproduzem na Antártida, 60 casos haviam sido confirmados por diferentes grupos de pesquisa e uma primeira expedição do Australis.
A maioria das detecções foi feita no norte da península. Mas o monitoramento foi escasso e terminou por volta de março de 2024, quando o inverno austral começou e cientistas que trabalham sazonalmente em bases de pesquisa deixaram o continente.
Para tentar entender o que aconteceu depois disso, o Australis se lançou ao mar em janeiro contando com um laboratório a bordo capaz de detectar RNA viral (material genético do vírus) em amostras de animais vivos e mortos.
O trabalho de coleta envolveu escalada de precipícios enlameados para coletar amostras de fezes de pinguins e cutucar com longos cotonetes o nariz de focas dormindo sobre icebergs. De 846 amostras coletadas em toda a costa oeste da península e no mar de Weddell, na costa leste, os pesquisadores identificaram 188 positivos.
Os mandriões foram os mais afetados, provavelmente porque se alimentam de carcaças que podem estar infectadas. Os pesquisadores se depararam com grande mortalidade dessa ave, especialmente nas regiões mais ao sul da península, indicando que o vírus pode ter chegado a essas áreas mais recentemente. Na baía Margarida, no lado oeste da península, eles encontraram 172 mandriões mortos.
“A gente não dava três passos sem encontrar animais mortos”, diz Carol Pessi, patologista veterinária e mestranda da USP (Universidade de São Paulo).
Outra brasileira presente na expedição, a veterinária Joana Ikeda do Instituto Mamíferos Aquáticos, teve a impressão de que a população de mandriões diminuiu drasticamente em relação a relatos históricos. “O status de conservação muito provavelmente vai cair para ameaçado de extinção”, ela diz.
Os pesquisadores se surpreenderam com a variedade de animais infectados no arquipélogo Armstrong Reef, considerado uma área de proteção internacional por abrigar milhares de pinguins-de-adelaide e centenas de biguás-antártico —uma espécie endêmica, encontrada somente no continente.
Lá, eles identificaram 29 positivos, incluindo essas duas espécies, além de petréis-gigantes, gaivotas e mandriões.
Cientistas temem que o vírus possa ser uma grande ameaça para a fauna local, pois muitos desses animais vivem em colônias densamente habitadas por várias espécies, facilitando a transmissão do vírus.
Dimensionar esse impacto, no entanto, é um desafio. Isso porque não há dados suficientes e atualizados sobre o tamanho e a localização de grande parte das espécies de aves e focas no continente, diz a veterinária argentina Marcela Uhart, da Universidade da Califórnia Davis, que não participou do estudo. No caso dos mandriões-do-sul, por exemplo, o último levantamento é de 1984.
Ainda assim, o impacto será sentido no ecossistema, Uhart alerta. “Mandriões são os faxineiros da Antártida”, ela diz. “Sem eles, vai haver carcaças por todo lado.”
Por enquanto, não há indícios de que o vírus possa ter se espalhado além da península. Mas é difícil saber se o vírus não está realmente presente ou se não foi detectado porque não há monitoramento amplo o suficiente. A Antártida é 1,6 vez maior que o Brasil e praticamente desabitada, com exceção de algumas bases de pesquisa que em sua maioria não possuem os equipamentos necessários para testagem.
“Na verdade, nós não sabemos até onde o vírus se espalhou e se houve mortalidade maior em locais que ninguém visitou”, diz a bióloga Meagan Deward da Federation University, na Austrália.
No final de 2024, foram registrados casos na ilha subantártica de Kerguelen, no oceano Índico, no meio do caminho entre a África do Sul e a Austrália. A ilha pode representar uma nova porta de entrada do vírus para outras partes do continente gelado e para a Oceania, o único continente que ainda não tem casos de gripe aviária registrados em animais silvestres.
Para Alcamí, as detecções feitas pelo seu time são apenas a ponta do iceberg. Ele aponta que contabilizar a mortalidade de animais marinhos é muito difícil. Focas, por exemplo, podem facilmente morrer no mar sem deixar traços.
No ano passado, um operador de turismo reportou mais de cem focas-caranguejeiras mortas sobre o gelo marinho no mar de Weddell. A equipe do Australis encontrou três carcaças infectadas com vírus na mesma região. “Os nossos números contam só uma parte da história”, diz o pesquisador.
Surpreendentemente, os pinguins não parecem ter sido muito afetados. Apesar de casos suspeitos de mortalidade em massa terem sido registrados no ano passado, neste ano a expedição não encontrou muitos mortos. No entanto, isso não quer dizer que essas aves não estejam infectadas.
Usando bombas portáteis que filtram partículas de vírus no ar, os pesquisadores observaram alta concentração do vírus da gripe aviária em colônias de pinguins que pareciam saudáveis. Os pesquisadores acreditam que os animais adquiriram imunidade contra o vírus e estão assintomáticos, mas ainda capazes de transmitir a doença, inclusive para humanos.
Alcamí alerta que pesquisadores e turistas no continente precisam tomar as medidas cabíveis de proteção, como o uso de máscaras, para evitar a contaminação. Mais de 120 mil turistas visitaram o continente no ano passado, de acordo com a Associação Internacional de Operadores de Turismo da Antártida.
Os pesquisadores esperam ter mais respostas com análises futuras de amostras de sangue coletadas na viagem. Necrópsias realizadas pelos brasileiros também vão ajudar a entender como diferentes cepas virais afetam cada parte do organismo, e por que diferentes espécies são mais ou menos resistentes ao vírus.
Segundo a veterinária da USP Aricia Benvenuto, a maioria dos estudos já feitos sobre gripe aviária em animais silvestres na Antártida e na América Latina não inclui necrópsias. “Ter uma equipe que foi lá para fazer necrópsias é um salto muito grande para a pesquisa de influenza nessa epidemia”, diz.