“Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar”, receitou Henry James (1843-1916), autor de “A Volta do Parafuso”, falando do escrever.
Como muitas vezes ocorre na escrita metalinguística, cujo objeto é arisco, é por metáfora que o escritor americano mais britânico da história chega à iluminação.
Enquanto isso, penso aqui comigo que a imagem da culinária e seus cuidados continua a funcionar quando expandida além da escrita. Ou será que não?
Na vida, todo mundo sabe, receitas são importantes como repertório, mas não ensinam o mais fundamental sobre cozinhar (viver), aquilo que cada um deve aprender por si.
Por si, sozinho, assumindo suas barras. Não é por ser tudo tão individual que seríamos incapazes de conversar, é claro. A linguagem não nos deixa sós. Basta trocar o faça-assim das receitas por um papo franco sobre os fundamentos —aquilo que é melhor saber, se estamos diante de um fogão.
Primeiro, para não atear fogo à roupa. Depois, para ir se virando. O que pede fogo baixo e o que exige uma chama forte? Quando é que o amor aperta, quando é que afrouxa?
Quanto tempo se deve deixar a carne marinando —e o frango, e o peixe? Depende, mas para assar na brasa basta jogar sobre todos um punhado de sal grosso. Perdoar uma ofensa é desativar seu veneno.
De posse de conhecimentos básicos como esses, e fazendo escolhas de maneira informada nas bifurcações que vão se abrindo ao longo da viagem, cada pessoa chega a um destino único.
Os pratos que saem da megacozinha universal são exponencialmente mais variados do que os já pululantes estilos culinários existentes na Terra. E sempre haverá espaço para a invenção —graça maior da coisa.
No entanto, nenhum percurso individual, por mais original e excêntrico, jamais abolirá os fatos universais de que lâminas de alho fritas um tiquinho além da conta viram carvão, e atravessar fora do sinal uma rua movimentada sem olhar para os lados pode levar à morte por atropelamento.
Sim, o macarrão atirado na panela antes da fervura fica grudento, enquanto o cérebro exposto a muitas horas diárias de rede social começa a apodrecer.
Alguns alimentos devem ser descongelados na geladeira, lentamente; outros, a jato no micro-ondas. O corpo humano pede movimento constante, uma forma de velocidade, para envelhecer mais devagar.
Receitas de pratos específicos, metas, carreiras, exemplos biográficos são no máximo roteiros de viagem, boias na escuridão —parâmetros para auxiliar cada um a fazer suas escolhas.
Henry James escreveu também que “a única obrigação que de antemão podemos exigir de um romance, sem incorrer na acusação de sermos arbitrários, é que seja interessante”.
Continuará valendo até aqui a metáfora? Claro que um romance deve ser interessante para o leitor, mas para quem seria desejável que uma vida humana pudesse ser descrita assim? Para a própria pessoa que a vive, talvez? Só se for.
As escolhas, estas, vão ser sempre de cada um. Que a gente saiba ao menos tocá-las na direção do saber e do sabor, esses parentes etimológicos deliciosos.
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