Figuras públicas brasileiras têm usado frequentemente a Bíblia para atribuir às mulheres um papel de submissão aos homens. No último dia das mulheres, Michelle Bolsonaro afirmou que o papel da esposa é ser ajudadora do marido. De fato, esta visão, comum no conservadorismo cristão, encontra eco nos textos bíblicos. Mas essa história é mais complexa.
As narrativas bíblicas permitem visões alternativas. Muitos teólogos (e teólogas!) têm feito leituras que conferem maior relevância ao gênero feminino, mesmo reconhecendo que a Bíblia é criação de um contexto histórico de forte dominação masculina.
O primeiro livro da Bíblia preservou dois relatos míticos diferentes da criação. Neles, a posição da mulher também é bem distinta. Em Gênesis 1, homem e mulher são criados juntos e ambos são ditos “imagem e semelhança” de Deus (Elohim). Não há nenhuma menção à submissão da mulher e as primeiras ordens da divindade se dirigem ao casal: ter relações sexuais (“crescei e multiplicai-vos”) e dominar a terra e os demais seres vivos.
Já em Gênesis 2, o homem é criado em primeiro lugar, moldado em argila. Quando Deus (Yahweh) considera que não seria bom o homem ficar sozinho, ele não cria uma mulher, mas os animais. É somente quando o homem não encontra um bom auxiliar entre os bichos que a divindade resolve criar a mulher a partir de um pedaço do homem. A tradução “costela” é debatida, mas isso é pouco importante aqui. Em Gênesis 2, a mulher é o último elemento da criação.
É fácil explicar por que o relato de Gênesis 2 foi o mais acolhido e divulgado pelas tradições religiosas posteriores, sobretudo cristãs: ele reforçava a ideia de uma hierarquia patriarcal entre os gêneros e estabelecia um papel subordinado e secundário para a mulher.
Em muitos casos, as figuras femininas da Bíblia são definidas pelo seu papel reprodutivo para garantir a continuidade da linhagem masculina. A questão da maternidade é central nas histórias de Rebeca, Raquel, Lea e, sobretudo, Sara.
Mas outras mulheres se destacam por sua sabedoria e liderança, contradizendo a narrativa predominante na Bíblia de um poder exercido exclusivamente pelos homens. Em Juízes, Débora conduz uma campanha vitoriosa contra os canaanitas. Ester dá mostras de grande astúcia e coragem para salvar o seu povo do extermínio.
Essa imagem ambivalente da mulher na Bíblia hebraica persiste no Novo Testamento.
Os próprios ensinamentos de Jesus foram muitas vezes considerados bastante inclusivos em relação às mulheres e bem à frente de sua época. O reino que ele apregoa não faz distinções de sexo, raça ou posição social. Embora os discípulos sejam todos homens, Maria Madalena é considerada uma seguidora privilegiada de Jesus. Além disso, uma das discussões teológicas mais sofisticadas de Jesus ocorre com uma mulher. E uma mulher samaritana, considerada impura pelos judeus.
Junto com Maria Madalena, outras mulheres estão entre as principais testemunhas da ressurreição e são as primeiras a anunciá-la aos onze discípulos, que, num primeiro momento, consideram um desvario sem sentido (nenhuma novidade, não é mesmo?).
O Novo Testamento também contém, porém, passagens extremamente depreciativas às mulheres e restrições ao seu papel no desenvolvimento das primeiras igrejas. Os escritos de Paulo estão entre os mais machistas da Bíblia: “que a mulher conserve o silêncio, com toda submissão”; “eu não permito que a mulher domine o homem”. Para Paulo, a mulher é um ser fraco, que caiu em tentação e transgressão, mas que pode ser salva pela maternidade.
Como se vê, a Bíblia dá testemunhos diferentes e até conflitantes sobre a mulher. As pessoas que usam a Bíblia como uma referência para suas vidas – sejam simples fiéis ou líderes religiosos – podem escolher vários caminhos. Qual você está escolhendo?