OPINIÃO. Por que a globalização foi boa – e tarifas são um perde-perde

Em 2004, o renomado economista Jagdish Bhagwati publicou o livro In defense of Globalization, inspirado pelos protestos antiglobalização de Seattle em 1999, por ocasião de uma reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio.

Em seu livro, Bhagwati apresenta uma série de argumentos simples – mas não menos sofisticados – mostrando como a globalização, em contraste com a superficialidade das críticas à época, poderia ser uma alavanca poderosa para o endereçamento de vários problemas sociais, como a redução da pobreza e do trabalho infantil, o incentivo ao empreendedorismo feminino ou mesmo a mitigação da degradação ambiental.

Para ele, a globalização, assim como a OMC, era parte fundamental da solução – e não do problema, como usualmente apontado.

De fato, ao olharmos os dados históricos, não é difícil constatar o quanto a globalização avançou e o quanto isso significou em termos de aumento da eficiência produtiva e geração de renda em nível global nas últimas décadas.

Segundo o Banco Mundial, de 1986 a 2008, a corrente de comércio mundial sobre o PIB global aumentou de 35% para 61%. Na década de 90, em particular, o comércio internacional cresceu a taxas três vezes superiores ao PIB mundial, impulsionado pela criação da OMC e a formalização de centenas de novos acordos de livre comércio. 

Quanto ao comércio de partes e componentes, que na década de 80 representava cerca de 40% das trocas internacionais, esta participação chegou a 67% em 2008, consequência da formação das cadeias globais e regionais de valor e do redirecionamento do portfólio de investimentos global para os países de mão-de-obra mais barata, com destaque para a China.

Ao longo deste mesmo período, cerca de 1,5 bilhão de pessoas saíram da extrema pobreza no mundo, e a taxa de pobreza nos países pobres e em desenvolvimento caiu de 40,1% em 1995 para cerca de 10,6% em 2022, enquanto a participação destes países nas exportações de bens e serviços globais aumentou de 16,5% para 32,2% no mesmo intervalo.

Além disso, o desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação impulsionou o comércio digital e de serviços, aumentando a participação das micro, pequenas e médias empresas no comércio exterior e contribuindo para o fortalecimento do empreendedorismo feminino.

O comércio internacional também passou a ter papel cada vez maior como via de acesso a novas tecnologias limpas, assim como a bens e serviços voltados para a aceleração da transição energética em nível global.

Em que pese os ganhos trazidos pelo aumento da integração econômica global das últimas décadas, o número de medidas protecionistas vem crescendo significativamente desde a crise financeira global de 2008, sobretudo nas economias desenvolvidas.

Nestas economias, a ascensão da China como uma superpotência, associada à percepção de que a OMC não foi capaz de moldar as práticas de comércio e investimento chinesas ao padrão das economias de mercado, traduziu-se em uma postura mais intervencionista por parte dos seus governos.

Somado ao contínuo aumento da desigualdade de renda e a crescente perda de empregos no setor manufatureiro destes países, geralmente creditada à concorrência desleal das importações chinesas, além da questão migratória, tem-se os ingredientes necessários para o recrudescimento do sentimento antiglobalização, o qual passou a influenciar significativamente as preferências eleitorais na Europa e nos Estados Unidos.

Como geralmente ocorre quando há excessiva politização de narrativas, explora-se a insatisfação do eleitorado e compromete-se a necessária adesão aos fatos.

A este respeito, ao menos duas questões merecem destaque no debate atual. Em primeiro lugar, será mesmo o comércio internacional o grande causador do aumento da desigualdade social e da perda de empregos industriais nos países desenvolvidos?

Em segundo lugar, é possível corrigir déficits comerciais por meio de tarifas de importação?

Sobre a primeira pergunta, os dados disponíveis sugerem que a desigualdade de renda e a perda de empregos industriais são fenômenos que já vêm ocorrendo há muitas décadas nas economias desenvolvidas.

No caso dos EUA em particular, ao estimar-se a tendência de queda de empregos no setor manufatureiro entre 1960 e 1980, período anterior, portanto, à ascensão econômica chinesa, nota-se que esta tendência pouco foi alterada entre 1980 e 2010, período de forte ascensão da China.

Isso não quer dizer que a China não tenha contribuído para perdas de empregos no setor, mas certamente relativiza o seu papel e aponta para outras questões de fundo, como o progresso técnico poupador de trabalho. 

Por outro lado, pouco se fala das vagas de emprego criadas em outros setores da economia americana, como por exemplo no setor exportador de serviços sofisticados, altamente integrado em cadeias globais de valor com a própria China.

Sobre a questão dos saldos comerciais, resta evidente que tarifas de importação são instrumentos inadequados para lidar com o tema. O saldo da balança comercial nada mais é que a diferença entre a poupança doméstica e o nível de investimentos de um país.

Os Estados Unidos, por serem um país que poupa pouco e investe muito, tem uma balança comercial estruturalmente deficitária com o resto do mundo. 

Contudo, caso a imposição excessiva de tarifas e o aumento da incerteza venham a causar uma recessão na economia americana, aí sim o objetivo de diminuição do déficit comercial poderá ser alcançado, mas pelas piores razões possíveis, ou seja, pela queda dos investimentos.

Tal como antes, boa parte dos argumentos atuais contrários à globalização, e em favor de medidas unilaterais, carece de adesão empírica ou mesmo lógica econômica.

A OMC, por outro lado, precisa de reformas profundas, seja para coibir comportamentos abusivos, seja para compatibilizar suas regras ao comércio do século XXI.

Conforme defendido pelo professor Bhagwati duas décadas atrás, a globalização, sob governança adequada, segue como uma das alavancas mais poderosas para a geração de prosperidade em nível global.

A ausência desta governança, contudo, levará inevitavelmente ao que na Teoria dos Jogos convencionou-se chamar de “dilema dos prisioneiros”. Em outras palavras: guerras comerciais e perdas de bem-estar global.

Lucas Ferraz é ex-Secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia (2019-2022) e Coordenador do Centro de Estudos de Negócios Globais da FGV.




Lucas Ferraz




Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *