Risco de deslizamento guia rotina de comunidade em Guarujá – 08/03/2025 – Ambiente

“Não existe um ser humano se acostumar com o que é ruim. A gente não se acostuma, mas procura se adaptar por não ter opção.” A afirmação é da aposentada Marcilia Rendeiro Tavares, 68, moradora do morro Cantagalo, na região da Enseada, em Guarujá, no litoral paulista.

Marcilia chegou ao bairro há 14 anos e hoje mora com o marido e um de seus dois filhos em uma casa no pé do morro. As famílias no Cantagalo vivem sob alerta constante devido às fortes chuvas. O mesmo acontece na comunidade vizinha, a Barreira do João Guarda.

Em março de 2020, um deslizamento causado por uma tempestade deixou 34 mortos. Desde então, a rotina dos moradores na temporada de chuva tem sido guiada por uma série de iniciativas para prevenir novos desastres.

Uma sirene para alertar sobre risco de temporais e desmoronamentos foi instalada na região em uma ação conjunta da Defesa Civil do estado e do município, em novembro de 2023. O equipamento está em uma torre da Escola Municipal Sérgio Pereira, que fica próxima às comunidades, e é usada como abrigo emergencial para acolher famílias em caso de alto risco geológico.

Ao chegar no bairro, é possível ver o caminho que o deslizamento de 2020 percorreu, como uma cicatriz no morro. Mais acima na encosta, está a obra de contenção e drenagem feita pela Prefeitura de Guarujá, finalizada em junho de 2024.

Marcilia estava em casa na noite da tragédia. Por ficar na parte mais baixa do morro, ela não foi atingida pela lama e se tornou uma espécie de base que recebeu bombeiros, agentes da Defesa Civil e outros vizinhos no socorro aos moradores.

“Foram oito dias de pesadelo”, recorda. As equipes de resgate deixavam parte dos equipamentos em sua casa e, ao encontrarem vítimas soterradas, os corpos eram primeiro colocados em frente ao seu portão, antes de serem encaminhados.

Marcilia desenvolveu crises de pânico e ficou quase cinco meses sem conseguir sair de casa. Hoje ela diz estar melhor, mas a apreensão volta quando o tempo fecha. “Antes, se chovesse, já tinha tudo pronto. Deixava a minha bolsa, uma toalha, uma muda de roupa em uma sacola pronta para sair. Esses dias de chuva forte, eu vi a mesma cena.”

Entre os dias 29 de janeiro e 3 de fevereiro deste ano o alerta sonoro das sirenes foi acionado duas vezes, quando três regiões da cidade receberam alerta extremo para risco iminente de deslizamento. Segundo a prefeitura, 49 famílias foram acolhidas na Escola Municipal Sérgio Pereira no período.

Além do local, Guarujá tem outros dois colégios usados como abrigo emergencial, um na Vila Baiana e outro na região do Morro do Engenho.

Kayke Almeida, 40, coordenador de equipe da Defesa Civil de Guarujá há seis anos, conta que os agentes fizeram um trabalho de conscientização nos bairros mais afetados. A população recebeu orientações do que fazer ao receber os alertas e foram estabelecidas rotas de fuga para os abrigos com pontos de encontro no caminho. No Cantagalo e na Barreira do João Guarda, diz, a resposta dos moradores tem sido quase imediata.

“Eles estão mais atentos à previsão, alguns ligam lá na Defesa Civil para ter mais certeza. Hoje é uma comunidade um pouquinho mais resiliente e preparada.”

Para ele, que trabalhou na equipe de resgate de 2020, a mobilização atual é uma resposta ao trauma de cinco anos atrás e ao trabalho junto aos líderes comunitários.

“A gente não quer que se repita a mesma noite de terror. Para nós ainda é muito difícil falar daquele dia”, conta Simone dos Santos da Costa, 46, presidente da Associação de Moradores do Cantagalo.

A líder comunitária está há 23 anos no bairro e se emociona ao recordar a noite do deslizamento, quando perdeu amigos do tempo de escola. Engajada em trabalhos voluntários, ela fundou a associação em 2022 e, desde então, acompanha as ações para prevenir novas perdas.

Simone recebeu a reportagem na sede da associação de moradores. O salão, com algumas cadeiras, um banheiro e um ventilador, é usado para reuniões, aulas oferecidas às crianças e também para armazenar doações. Na ocasião, ela preparava o local para servir de abrigo em caso de emergência.

Ela afirma que está sempre atenta à previsão do tempo. Mesmo antes de receber os alertas, entra em contato com a Defesa Civil e, em seguida, começa a avisar os vizinhos. “Eu arrumei um apito, ficou melhor para mim. Então eu apito e saio gritando”, conta.

“A rotina mudou muito, porque nós sabemos o seguinte: se a sirene tocar, a gente não pode ficar em casa.”

Tem sido assim neste verão. Após os alertas emitidos no final de janeiro, Simone acompanhou famílias que ficaram abrigadas no colégio por quatro dias.

“[Durante o dia] a gente voltava para casa, para ver a situação. E depois era rezar para no dia seguinte não ter caído nenhuma árvore e para o barraco não ter deslizado.”

Para ela, são necessárias políticas de moradia que possam realocar parte dos moradores, já que muitos não têm para onde ir. “Alguns são fundadores da comunidade e foi só aqui que puderam construir uma vida”, afirma.

“Ninguém mora no morro porque quer. Eu tô aqui há 23 anos e essa é a primeira vez que tem alguma prevenção. Antes a gente só ficava lá.”

As ações para mitigar os efeitos de desastres nos litorais norte e sul de São Paulo foram implementadas após ocorrências com grande número de mortos e desabrigados, caso dos morros de Guarujá e da Vila Sahy, em São Sebastião, bairro mais afetado pela chuva de fevereiro de 2023, que deixou 64 mortos.

O tenente Maxwel Souza, porta-voz da Defesa Civil do Estado de São Paulo, afirma que após 2023 ficou ainda mais evidente a necessidade de ações para despertar o senso de urgência na população. E isso inclui a emissão de alertas e o acionamento das sirenes, que foram instaladas em três cidades: Guarujá, São Sebastião e Franco da Rocha, na região metropolitana da capital paulista.

“Essas medidas são para que as pessoas consigam conviver com o risco sem morrer.”

Com chuvas cada vez mais intensas e frequentes, em decorrência das mudanças climáticas, a diminuição do perigo para quem vive muito próximo da Serra do Mar é um desafio crescente. Segundo Edilson Pizzato, professor no Instituto de Geociências da USP (Universidade de São Paulo), a ocupação dessas áreas é desaconselhada, porque a estrutura geológica dos morros é naturalmente suscetível a deslizamentos.

“Existem obras que podem ser feitas, mas dificilmente você vai conseguir eliminar o risco.”

O mais recomendado, segundo o geólogo, é realocar as pessoas e evitar a reocupação desses locais. “Na maioria dessas áreas, principalmente da Serra do Mar, você tem que pensar na segurança e, nesse caso, infelizmente, não é aconselhável manter as pessoas ali.”

A situação é diferente do que acontece, por exemplo, em alguns bairros da capital paulista onde problemas causados pelo excesso de chuvas não são decorrentes da estrutura geológica dos terrenos e podem ser resolvidos com obra. Nesses casos, afirma, o problema vem do processo de ocupação que acontece sem a infraestrutura. “Então é possível entrar com obras de urbanização e até reverter o risco.”

O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.

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