A costureira Solange dos Santos Salazar herdou da avó e da mãe a devoção pelo ofício.
Nem a enchente de 2024, que cobriu sua casa de dois andares no bairro Sarandi, em Porto Alegre (RS), foi capaz de afastá-la do trabalho.
Na tragédia do ano passado, ela relata ter tido prejuízo de R$ 200 mil em bens e mercadorias.
As temperaturas tórridas dos últimos dois meses, porém, obrigaram a profissional a trocar a máquina de costura pelo chuveiro várias vezes por dia.
“Não consigo trabalhar com esse calor. Tenho de fazer uma pausa, tomar um banho e me recompor”, diz Solange, enquanto empilha algumas das 15 peças que produz por semana em seu ateliê, no térreo da casa.
A cheia de maio passado destruiu três aparelhos de ar-condicionado e dois ventiladores de teto que Solange ainda não havia terminado de pagar.
Na tarde em que recebeu a reportagem da BBC News Brasil, somente um pequeno ventilador portátil refrescava o ambiente.
O outono de 2024 ficou marcado na memória recente dos gaúchos em razão da enchente.
O verão de 2025, por sua vez, já garantiu lugar na história graças às temperaturas próximas de 40°C.
Alguns, como Solange, viram os dois fenômenos extremos baterem a suas portas em um intervalo de nove meses.
Em 11 de fevereiro, a temperatura na capital gaúcha chegou ao seu recorde no ano: 39,6°C.
O vendedor Paulo Nunes aproveitou o espírito de recuperação da capital depois da enchente para abrir um quiosque no Parque Marinha.
É uma área cobiçada para a prática de esportes e lazer em dias quentes e que não foi atingida pelas águas do Lago Guaíba em maio e junho.
Nas últimas semanas, o calor afugentou a clientela, conta Paulo.
“Quem passa por aqui só quer saber de consumir água”, afirma o vendedor, indicando as garrafas de 500 ml de água sem gás vendidas a R$ 5.
Em uma tarde em meados de fevereiro quando a reportagem esteve no parque, os poucos frequentadores ali procuravam sombras para escapar do abafamento.
A faxineira Aline Junqueira e sua família ficaram a salvo da enchente. O calor, porém, não os poupou.
“Está horrível. Só deveria sair de casa quem precisa”, comenta Aline, que se defende em casa à base de “ventilador e água”.
Estiagem provoca perda de bilhões
Porto Alegre é usualmente quente e úmida no verão. A diferença, desta vez, é a baixa umidade relativa do ar, em torno de 30% a 20%.
Uma estiagem severa, mesmo para os padrões gaúchos, já afeta 210 dos 497 municípios. Há 20 dias, eram 151.
O maior impacto ocorre no campo, com perda de safras e rebanhos estressados.
Segundo levantamento da assessoria econômica da Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), o Estado perdeu R$ 319,1 bilhões entre 2020 e 2024 em razão das estiagens. O valor equivale a quase metade do PIB do Estado.
Este ano, a seca afetou especialmente as lavouras de soja, milho e milho silagem, de acordo com a Emater-RS (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul).
As perdas na cultura de soja atingem todo o Estado, mas a região da Fronteira Oeste, no limite com a Argentina e o Uruguai, foi a mais afetada.
É lá que está situado o município que, por três vezes este ano, registrou a temperatura mais alta no Brasil: Quaraí.
A cidade é conhecida como terra natal do pianista Miguel Proença (1939-) e do escritor Dyonelio Machado (1895-1985).
Uma sequência de marcas escaldantes (42,4°C em 23 de janeiro, 42,5°C em 3 de fevereiro e 43,8°C em 4 de fevereiro) deu a Quaraí uma notoriedade que nem seus filhos ilustres seriam capazes de garantir.
Com a seca, multiplicaram-se incêndios em florestas e pastagens na região.
Em São Borja, na fronteira com a Argentina, uma área de 2 mil hectares do Comando Militar do Sul, com 800 cabeças de gado, ardeu durante quatro dias em janeiro.
Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de comunicação do Comando Militar do Sul afirmou que o fogo foi provocado por um curto-circuito e controlado sem vítimas ou perdas materiais significativas.
Em Miraguaí, no noroeste, também em janeiro, foram necessários 15 mil litros de água para debelar o fogo em um bosque de eucaliptos.
Em Santana do Livramento, na região da Campanha, uma área de mata nativa próxima aos vinhedos da Vinícola Almadén pegou fogo em 11 de janeiro.
O incêndio, que também não deixou vítimas, foi debelado pelos próprios funcionários da empresa.
O atual verão seco é associado ao fenômeno La Niña, caracterizado pela elevação da temperatura da água no Oceano Pacífico Equatorial.
O fenômeno foi confirmado em dezembro por centros de monitoramento de vários países.
Ele costuma ser acompanhado de períodos secos no Sul do Brasil e chuvosos no Sudeste e Nordeste.
“O La Niña traz estiagem, escassez de chuva, muitas vezes episódios de seca”, afirma a meteorologista Estael Sias, do site MetSul, à BBC News Brasil.
“Isso geralmente ocorre primeiro no centro-norte da Argentina, por ser uma região mais continental, distante do oceano e que esquenta com mais facilidade”, explica Sias.
“As bolhas de calor geralmente têm início no centro-norte da Argentina e no Paraguai e vão se expandindo até alcançar o Rio Grande do Sul e todo o Sul do Brasil.”
Combinam-se, assim, de acordo com a meteorologista, dois fatores: a atmosfera mais seca favorece o aquecimento, e o solo em escassez de água, por seu turno, reage esquentando ainda mais o ambiente – um mecanismo conhecido entre os meteorologistas como feedback.
“Só a chuva consegue dar fim a esse processo. E até vêm acontecendo temporais, mas não são cinco ou dez dias de chuva que vão restabelecer a umidade do solo”, completa Sias.
Segundo a meteorologista, em um cenário de mudanças climáticas como o vivido atualmente no planeta, a probabilidade de bolhas de calor aumenta em 60 vezes.
Sias explica que bolhas ou ondas de calor são episódios de elevação extrema de temperatura em razão de estiagem, baixa umidade relativa do ar e aquecimento do solo.
Na América do Sul, essas formações costumam ocorrer no norte da Argentina e no Paraguai, de onde se expandem para o sul do Brasil.
“Em janeiro de 2022, tivemos uma bolha de calor com 15 dias de marcas ao redor de 40°C no Rio Grande do Sul”, relembra.
Cones derretidos e cotidianos afetados
Se as condições climáticas explicam o que se passa na atmosfera, incidentes que assombram o cotidiano dos gaúchos muitas vezes estão relacionados à ação humana.
Em Porto Alegre, o Corpo de Bombeiros Militar estima que incêndios na rede elétrica tenham aumentado 30% neste ano em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o site Matinal.
A razão, segundo especialistas, é a sobrecarga da rede em razão do uso contínuo de ar-condicionado.
No interior, o tempo ardente provocou cenas dramáticas —ou cômicas, a depender do ponto de vista.
Em Santa Maria, dois cones de trânsito derreteram ao ficarem expostos durante três dias ao sol sobre o asfalto de um estacionamento da Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade do município.
A imagem dos cones fundidos foi registrada em vídeo por um morador em fevereiro e viralizou em uma rede social.
Naquele dia, o município registrou temperatura de 38,9°C, segundo a empresa BaroClima Meteorologia.
Em Cachoeira do Sul, na Região Central, o solo chegou a rachar em áreas de lavoura.
Outra imagem que viralizou, desta vez no Centro de Porto Alegre, foi a de um termômetro industrial a laser empunhado por pesquisadores do departamento de botânica da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Apontado para uma superfície de brita asfáltica no Parque Maurício Sobrinho, popularmente chamado de Parque Harmonia, o instrumento utilizado para medir temperatura em pequenas áreas indicou 62°C.
A falta de equipamentos de ar-condicionado na maioria das 2.320 escolas estaduais provocou o adiamento por quatro dias do início do ano letivo na rede pública do Estado, em meio a uma queda-de-braço jurídica entre o Executivo e o sindicato dos professores.
A entidade sindical obteve uma liminar junto ao Tribunal de Justiça do Estado que determinava o adiamento do início do ano letivo do dia 10 para o dia 17 de fevereiro. O governo recorreu da medida e obteve decisão favorável ao início das aulas no dia 13.
À BBC Brasil, o governo do Estado disse ter destinado R$ 180 milhões para que escolas estaduais comprem “ventiladores, água, protetor solar, bebedouros, cortinas, e em reparos básicos em redes hidráulicas e elétricas”.
Procurado pela BBC News Brasil, o Cpers-Sindicato, que representa professores e funcionários de escolas públicas estaduais, não havia dado retorno até o fechamento desta reportagem.
Para algumas vítimas da enchente de 2024, o calor, assim como as águas, torna os próprios lares inabitáveis.
Moradora do bairro Sarandi, a recepcionista Elisangela Avelhaneda Melo não consegue permanecer nos cômodos da residência que compartilha com o filho.
Construída a centímetros do dique do Arroio Sarandi, a habitação ocupada pela família há mais de 30 anos está infestada de mosquitos e pererecas atraídos pelo calor, pela umidade e pela vegetação que cobre o talude da estrutura.
Com a enchente do ano passado, a recepcionista teve de passar cerca de três meses fora de casa.
Agora, a família de Elisangela é uma das 57 da mesma rua que têm prazo dado pela Prefeitura até fevereiro para deixar o local a fim de dar lugar a obras de reparação do dique.
Onze dias antes da data limite, ela não tinha conseguido se cadastrar nos programas de moradia oferecidos aos atingidos pelo município, pelo Estado e pela União.
“Reconheço que não é mais possível ficar aqui. Mas eles [município, Estado e União] são governo e têm de dar garantias a quem vai desocupar um lugar onde viveu por toda a vida”, desabafa.
É provável, porém, que os próximos dias tragam algum refresco para os gaúchos.
A partir deste sábado (8) está prevista a chegada de uma massa de ar frio à região Sul. Esperam-se fortes chuvas, e em alguns municípios a temperatura pode se aproximar dos 10°C.