“Nunca apanhei do meu pai, vou apanhar de algum homem?”, indaga uma mulher vítima de violência de um ex-companheiro. A frase, porém, é ecoada por outras vítimas na sala de espera da 47º DP (Capão Redondo), na zona sul São Paulo.
Informações obtidas por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) mostram que essa foi a unidade da Polícia Civil da capital paulista que mais registrou casos de violência contra mulheres em 2024.
Os dados apontam 101 mil registros no ano passado, sendo que mais de 2.400 tiveram entrada na 47ª DP. A maioria se refere a ameaça, lesão corporal e injúria —nem todos são registrados como violência doméstica.
A Folha esteve no local no dia 26 de fevereiro e acompanhou denúncias de violência de gênero. Ao longo de sete horas, quatro mulheres chegaram para relatar uma ocorrência do tipo. Há quase dez anos, o jornal também esteve no local e acompanhou um dia na delegacia —o cenário foi semelhante.
Ali, enquanto alguns aguardavam para comunicar roubos, mulheres esperavam para reportar violências. Em determinado momento, funcionários orientavam que vítimas de golpes e furtos registrassem seus casos por meio do boletim online, uma vez que o atendimento por ali demoraria.
As vítimas de violência conversaram com a reportagem sob condição de anonimato, por temerem por sua segurança, e afirmaram que as agressões sofridas partem de ex-companheiros que não aceitam o fim do relacionamento. Foram vítimas de xingamentos, perseguição, soco no rosto, pedradas e chutes.
Com um roxo na maçã do rosto, uma jovem de 21 anos aguardava o encaminhamento da agressão que sofreu do ex-namorado naquela madrugada. Enquanto falava com a reportagem, familiares que a acompanhavam pediam para a conversa ser mais discreta, já que parentes do agressor também estavam na delegacia.
Naquele dia, a jovem passaria a manhã e tarde por ali para concluir a denúncia. Durante o período, conversava com outras mulheres que foram agredidas e, após fazer o exame de corpo delito, foi alertada por outras vítimas de que não teria como voltar atrás.
“Ele já falou para mim várias vezes que eu tenho minha filha para criar e ele não tem nada a perder. Quem vai fazer alguma coisa?”
A jovem conta que estava com a filha bebê no colo no momento que foi agredida e a criança quase foi atingida. A polícia chegou a tempo, e o ex, que estava com uma faca, foi preso em flagrante.
Apesar do apoio da própria família, parentes do ex reclamam da postura dela. A ex-sogra dizia que a jovem também tinha sua parcela de culpa, pois havia ido atrás dele após o primeiro término.
A falta de apoio por parte dos familiares do agressor é compartilhada por outras vítimas. Uma mulher de 33 anos contou que a mãe do ex pedia que ela aceitasse o filho de volta —ele a perseguiu durante um ano no trabalho e em casa.
Naquele dia, chegou à delegacia inquieta e agoniada. Ela passava uma folga do trabalho com o namorado e a filha, quando o ex surgiu na porta da casa e começou a xingá-la. Enquanto esperava, ele não parava de mandar mensagens de ameaças. “Você vai comer o pão que o diabo amassou”, escrevia ele.
Ela conseguiu fazer um boletim de ocorrência por perseguição e descobriu que ele é procurado pela polícia por não pagar pensão de outra ex. Foi orientada a procurar as autoridades caso ele voltasse a entrar em contato com ela.
Não foi a primeira relação em que ela sofreu algum tipo de violência, e por experiência ela reforça a importância de procurar a polícia. “Vai denunciar quando? Quando ele te matar?”, diz. “Eles não mudam. Depois da primeira vez que levantam a mão, vão levantar sempre.”
Perto dela estava outra mulher, de 35 anos, com marcas nas pernas. Na delegacia, ela aguardava o atendimento por furto. Mas, há cerca de dois meses, esteve ali por causa do ex, que tentou atear fogo na sua casa e jogou pedras contra a mulher.
Na bolsa, ela anda com a medida restritiva contra ele, além do boletim de ocorrência e o laudo médico que atesta as violências sofridas. No celular, há imagens do corpo repleto de hematomas roxos de agressões.
Após a violência, ocorrida em dezembro, ele foi preso —era reincidente por tráfico e assalto. Mas ela continua angustiada e diz que pensa em se mudar de casa, como medo de que ele saia da prisão e volte a procurá-la.
“Só não morri porque a pedra não pegou na minha casa. Nenhuma mulher merece isso.”
As três mulheres relatam que foram bem atendidas na delegacia e orientadas sobre seus casos. No fim da tarde, porém, uma jovem com 27 anos aguardava atendimento chorando.
À reportagem ela conta que terminou com o namorado na véspera após descobrir uma traição. O namorado não aceitou e tomou o celular dela, dado por ele. Ao tentar reaver o aparelho, ela levou um chute.
Na delegacia, policiais civis no pátio afirmaram que ela deveria voltar para casa e ligar para o 190 —telefone da Polícia Militar. “Disseram que eu estava querendo só recuperar meu celular e não com medo da minha vida. É a função deles, por que não podem me ajudar?”
Aos prantos, ela dizia temer pelos aplicativos do banco e relatou que o ex só pagou pelo celular porque quebrou o antigo dela em uma crise de ciúmes. Poucos minutos depois da chegada, foi embora sem formalizar a denúncia.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do estado diz que o 47º DP tem atuado de forma rigorosa na apuração de crimes de gênero, com medidas que incluem o acolhimento das vítimas, investigações especializadas e o encaminhamento de pedidos de medidas protetivas à Justiça.
A pasta da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) ressalta que a região conta com a 6ª DDM (Delegacia de Defesa da Mulher), que oferece atendimento 24 horas.
A SSP afirma que as campanhas de conscientização têm contribuído para o aumento das denúncias para este tipo de crime nos últimos anos.